terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A RESENHA DO JOSÉ CASTELLO SOBRE "QTAIS", MEU ÚLTIMO LIVRO DE POESIA

POESIA E ALEGRIA


José Castello, caderno "Prosa e Verso", de O Globo -1.2.2014


Uma poesia que dança. Uma poesia que coloca o jogo divertido das palavras acima do protocolo dos significados. Uma poesia nômade, ambulante, que passeia por vários mundos. Eis a poesia de Luis Turiba, de quem leio “Qtais” (7Letras). Antes de tudo, o império dos sons, como em “Ser minério é coisa sério”, poema em homenagem a Minas e aos mineiros. Antes de qualquer coisa, a busca do novo: “caminhar é pisar chão/ sem pisá-lo de antemão”. O poeta é um caminhante – é uma espécie de ambulante que avança apoiado em seu cajado. Um poeta libertário, cujo cajado (a língua) dele também se desvia. “Meu cajado é libertário/ temos quase a mesma altura/ caminhando em paralelo/ olhando o mundo às avessas”.


Avançam os dois, “plugados à lei do impulso”, em uma grande aventura zen. Vão aos tropeções, mas deles, em vez de tirar dores, tiram lições. O poeta caminha contra a lógica: “A lógica dos lógicos já não me interessa/ (...)/ Meu tempo está no vento peso  q não pesa”. Avança sem uma bússola, parece um sonâmbulo, Turiba nos faz ver. “Sou cego e calado e escrevo ensimesmado”, define-se. Ainda assim, cultiva uma intensa luz interior. Diz a si mesmo: “Não apague a luz interna e intensifique-se”. Sem direção, resta-lhe a própria força para construir seu caminho: “levo-me leve em vôos sem lei/ meu fio terra é madeira de fibra/ sou andarilho”. Carrega um cajado “alado e desconfiado” e assim privilegia a leveza, os voos e os grandes saltos. “Um fariseu distraído/ afável & aviolado.”


Muitas vezes ligamos a poesia ao peso, à densidade, ao sofrimento – mas é contra essas relações difíceis que Luis Turiba escreve. É um poeta que escreve, antes de tudo, para se divertir. A poesia como brincadeira, como dança sem método e sem partitura, como improviso. Assim Turiba brinca enquanto faz poesia, e nós, seus leitores, nos deliciamos. Vai buscar seus materiais nos cantos mais remotos – como em “O que é o Sol?”, segundo ele escrito “a partir de um poema oral búlgaro do século V”. Verdade? Mentira? E isso importa? Interessa sim a distância que o poeta toma para desenrolar seus versos. Para erguer-se em seu tapete voador. Faz uma poesia que voa, mas que é também uma poesia andante, que rasteja, que cheira o chão e suas brechas. Seja como for, escreve uma poesia que canta. Importante definir o que faz? Não parece. “Ainda não aprendi teu nome/ Mas já sei (quase) tudo sobre”, diz ele, descortinando uma resposta.

Busca um verso “arrítmico”, aos soluços, aos impulsos. “Quisera fazer um verso/ com a sublime arritmia do amor/ um verso míssil/ neurastênico e febril/ ar do dia anterior à criação do universo”. Destino dos poetas, não só de Turiba: estar às voltas com as origens. “Um verso de trivela/ transverso e subversivo”, prossegue em seu sonho. “Um verso de fogo e batom/ histórico, histérico e erudito”. Origem (fogo) e beleza (batom) se misturam para anunciar uma estratégia que o traz de muito longe e leva para mais distante ainda. Matéria de poesia: o tempo, que nas mãos de Turiba se converte em um material maleável e perigosamente desdobrável.


Uma poesia na qual as identidades se misturam e é assim que se aproximam, como está dito: “quem manda em mim/ sou ela”. Poesia da mistura, mas também da confluência e do diálogo feliz entre palavras. Nos versos elas encontram seu lugar de honra, encontram provavelmente seu berço. Por exemplo, quando Turiba brinca assim: “caramba/carambolas/ sou de jambo/ não me amora”. Uma escrita de contras-sensos: “agnóstico/ benzo-me ao olhar o Cristo Redentor”. Exatamente como somos, seres de contradição e de desmentidos, seres instáveis, de pequenas demências, dos quais a poesia é a língua mais exemplar.


Há nela um gosto não só pelos sons, mas pela desafinação. O poeta relata: “Mas cuíca também falha/ Em plena Sapucaí/ Quebra a vara/ Rompe o couro/ Desarma o circo e o estilo”. A desafinação como uma nova maneira de os sons se encontrarem e se desencontrarem. Como uma outra arritmia, que perde o prumo, mas não deixa de avançar. O poeta, precavido, multiplica seus instrumentos. “Por isso, digo em sigilo:/ Tenho duas cuícas/ Florença e Nikita”. Iguais, mas diferentes – e é dessa diferença que vem a desafinação inevitável e original. “Enquanto Florença aflora/ Nikita quita/ E assim floreiam o mundo/ Desafinadas as cuícas.” Também a desarmonia tem seu valor. Também o desajuste é promotor de beleza, o poeta nos leva a ver. O mundo não é uma orquestra afinada e impecável; ao contrário, é um grande sopro de desencontros, e muita beleza sai disso.

Um poeta, portanto, que desconfia das excessivas habilidades. E que privilegia as diferenças. Por exemplo, a estranheza que ele encontra nas girafas: “ouvi dizer que elas dormem/ dez minutos a cada hora/ também pudera, natureza mátria/ com aqueles pescoços quilométricos/ (que um dia hei de beijá-los)/ um cochilo faz descansá-los”. Girafas: exceções em um mundo de exceções, e eis aí a origem da poesia. Nesses desencontros, nesses desalinhamentos. Em um poema como “Língua à brasileira”, Turiba evoca Caetano Veloso, José Saramago, Guimarães Rosa, os irmãos Campos, tornando difícil que o leitor vislumbre uma ascendência nítida para sua poética. Poeta da mistura, Turiba louva seus vários caminhos, que volta a percorrer como um ermitão em busca do próprio nascimento.


Aprecia o indecifrável, o vago, aquilo que causa medo – tudo que os poetas de gabinete veriam como obstáculo e atrito, ele enxerga como impulso e leveza. Sabe que “dos signos, a linguagem é a mais subversiva”. Por isso não se interessa em organizar o desorganizado, ou em hierarquizar o que não em posição fixa. Não: Turiba é um poeta em que a alegria de escrever (viver) serve de combustível primeiro. Escrever “por escrever”, e por isso é tão dono de sua escrita, ainda que ela lhe fuja a cada verso, ainda que lhe dê rasteiras e subverta sua própria palavra. Vê Exu (perigo, mas energia) “até nas lesmas/ do mago Manoel de Barros”. Exu, anjo das manhas, em torno de quem o poeta se contorce para escrever.