quinta-feira, 13 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS SE ETERNIZOU: AGORA É MUSGO

O POETA QUE VIROU MUSGO

Luis Turiba

 

Manoel de Barros agora é musgo. Ele sempre teve parentesco com garça. Como ele gostava de dizer: "palavras têm sedimentos, cópia de lodo, usos do povo, cheiros de infância, permanências por antros, ancestralidades, bostas de morcegos. Não vou encostar as palavras lesma, sapo, águas. Pois elas são meus espelhos."

Manoel pegou o trem do Pantanal rumo a eternidade. Águas agora são fêmeas de chão.

A entrevista que fizemos com ele para a Bric-a-Brac foi, talvez, meu mais importante trabalho jornalístico. Ele era um poema-silêncio. Quase um ano de convencimento. Depois, seis meses de troca de cartas. Visitamos o Poeta por três ou quatro vezes em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Ele nos apresentou – Resa, João Borges e eu – o famoso Caldo de Piranha com muito uísque dos bons. Muita conversa e Manoel adorava mentir. Contava que esteve, na sua juventude, com Noel Rosa na Lapa. Parecia coisa de filme de Wood Allen. Farrista, risonho, adorava uma piada.

Mas em público, virava lesma, caramujo, parede. A última vez que nos vimos foi no final do século passado, numa tarde em sua casa, onde levei o então ministro Gilberto Gil para conhece-lo. Dona Stela fez uns petiscos e conversaram muito. Documentei isso em vídeo:

"Oi Gil… quanto prazer tê-lo em casa. Mas estou recebendo aqui o poeta e não o ministro."

Esperto, foi Manoel de Barros quem tratou logo de quebrar o protocolo. Trouxe o ministro-cantor para o mundo das palavras. Gil, barroco-baiano, aceitou e tocou em frente.

"O prazer é todo meu, Manoel. Fazia tempo que buscava este encontro. Sua prosa poética me encanta, está na mesma margem da de Guimarães Rosa."

Manoel de Barros se orgulhou. Aos 88 anos, cabeleira branquinha como as garças do Pantanal, jeito de passarinho tímido, foi receber o ministro Gilberto Gil no portão de entrada da sua casa na pacata Rua Piratininga, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Estava acompanhado de Dona Stella, sua mulher, da filha e de amigos.

O ministro-poeta também esperava por este encontro há algum tempo. Tinha vontade de conhecer e papear com seu colega das águas pantaneiras. As duas tentativas anteriores haviam fracassado. Manoel não pode comparecer à Brasília para receber a Medalha da Ordem do Mérito Cultural de 2004, outorgada pelo presidente Lula e pelo ministro da Cultura. Nem tampouco a uma estada do ministro Gil à cidade de Corumbá. Andava dodói, mas já voltou à ativa.
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quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O ELEITOR DESCONSTRUÍDO

Luis Turiba*

 

Desconstrução. Ninguém escapou dela. Nós, eleitores, também fomos totalmente desconstruídos pelo virulento tsunami eleitoral que o Brasil acaba de viver.

Mesmo reservando-se, todos fomos atingidos pelos seus ecos e efeitos dessa onda como pedestres distraídos em meio a um tiroteio de balas de prata perdidas . Não há ciência que explica tal dinâmica. A história ainda se redesenha aos nossos pés. As fendas são profundas, os abismos perigosos, os atalhos tenebrosos. Os brasileiros saíram quase nocauteados desse ringue.

Estamos aos cacos e tentamos agora juntá-los. Vitoriosos e derrotados, pois são cacos de certezas e incertezas; de sonhos e pesadelos; de confianças, promessas, medos, mágoas e ilusões. Cacos políticos e ideológicos; de marketing e malandragens; de dívidas e compromissos. E nem toda cola-tudo, cola tudo.

Sim, o PT venceu. Dilma foi reeleita, é a nossa legítima presidenta por mais quatro anos. E daí? Isso é o lado óbvio ululante da história. Aos vencedores, as batatas. Aos derrotados, o choro livre. A democracia escolheu o seu projeto para o país. Mas a ficha ainda caiu verdadeiramente.

São muitas as contas a fazer de todos os lados, há muitos feridos a recolher nos diversos campos de batalha. Afinal, participamos de  uma espécie de MMA eleitoral, onde bater do joelho pra cima, com rabo de arraia e dedo no olho, se tornou algo tão corriqueiro como não se beber um copo de água em São Paulo. Sem inocentes nem delicadezas, reinventamos a lei nazista na comunicação tropicalista: mentira + meia mentira + mentira em dobro = quase verdade falsa.

Foi uma eleição clip-pesada. Nem bem a corrida começou, caiu avião. Dentro dele um candidato da esperança nordestina. E até agora, ninguém explicou direito essa tragédia – mesmo sabendo que tragédias não se explicam. Das cinzas, surge uma candidatura santificada por novas ideias e cabeças. Havia algo de novo no ar, além do clássico FlaxFlu político que se repete há 20 anos. Marina se pintou, se enfeitou mas não colou. Foi desconstruída em pleno vôo com requintes de cinismo e sordidez.

Dizem que em política não há traição: há rearranjos. Desarranja daqui, rearranja dali, de novo na pauta do país o antigo e conhecido clássico Tucanos versus Petistas, os vermelhos contra os azuis. Palavras ganharam novos significados, espaços e múltiplos usos: aparelhamentos, pobres, ricos, social, corrupção, mudança, inflação, educação.

E todos nós caímos dentro do ringue cibernético da web. Afora os políticos, famílias se dividiram, casais se separaram, primos contra primos; tios versus cunhados; amizades se desfizeram. Até a nossa maior empresa, orgulho nacional, a Petrobras, passa por acusações gravíssimas. Nesse processo sedento de poder, todos nós xingamos e dançamos como cegos de ilusão no baile autofágico da desconstrução.

Somos 141 milhões de eleitores batendo títulos e miolos. Sete milhões não votaram, 30 milhões anularam o voto. Quem analisa isso? Ou 37 milhões não têm nenhuma importância? O país ficou geograficamente cortado. No Norte/Nordeste, os vermelhos. Do sudeste para baixo, os azuis. Como reconstruir nossa geografia tropical? Como remisturar as cores vivas?

Sábia e tranquila, a líder maior da Dilma estendeu a bandeira branca de Oxalá no meio do terreiro e pediu diálogo. Aécio Neves, com sua capa de 50 milhões de votos, também falou em recosturar a unidade nacional. Presidente eleita e líder da oposição, desanuviam os ânimos. Um nova e histórica peleja se descortina no horizonte. Reforma política e mudanças generalizadas. Amigo meu, Nico do Cavaco, fez um samba há anos atrás, para o Suvaco do Cristo, onde antevia: "Oh venham ver/ Oh venham ver Vera Cruz/ A luta dos peles vermelhas/ Contra os casacos azuis."

Agora é o momento de acender uma vela de sete dias ao eleitor desconstruído. O poeta Torquato Neto escreveu e Gilberto Gil cantou no tropicalismo, quando a ditadura prendia e torturava brasileiros, entre os quais a presidente Dilma Rousseff: "Eu brasileiro confesso/ minha culpa meu pecado/ meu sonho desesperado/ meu bem guardado segredo/ minha aflição." Ao contrário da canção, aqui não é o fim do mundo, mas estivemos bem próximo. Respirar fundo e se reconstruir - eis a missão.