terça-feira, 9 de janeiro de 2018

KENDJI, O GATO DE TORNOZELEIRA ELETRÔNICA

Luis Turiba
Kendji é um exemplo vivo de superação. Gatos normalmente têm sete vidas e vão gastando-as a pinga-gotas. Mas esse siamês (da foto) tem, no mínimo, umas quinze já vividas e disposição para encarar outras tantas, tamanhas foram as confusões que ele andou e ainda anda aprontando ao longo de seus quatorze anos de existência. Kendji é um gato malandro. Tem nome de guru indiano, mas foi criado como um bom carioca, solto numa ladeira da Glória – rua Barão da Guaratiba -, entre a Lapa e o Largo do Machado, onde moram muitos outros gatos e gatas, cachorros e cachorras e gente, muita gente que sobre e desce a pé e de motos. Foi no intenso movimento da Barão que ele se fez, se criou, sobreviveu e foi gastando suas vidas. Dormia na casa de um, alimentava-se em outras. Chegou a ter duas identidades na mesma rua. No lar original, era Kendji, mas nas outras casas no baixo da ladeira, era Mingau. Brigas com outros gatos por causa de gatas no cio, perdeu-se as contas. Nesse item, Kendji tomou muita porrada, perdeu metade dos dentes, rasgou orelhas, rabo e barriga; caiu de muros altíssimos, teve o olho esquerdo furado. Até ser castrado. Pense que sossegou? Qual nada. Deu de caçar os passarinhos nos vizinhos. Ficava só na tocaia, esperando, arisco como só, o passarinho bobear e zááz, pulava e trazia o bichinho pra casa. Era pena pra tudo quanto é lado. Até que um dos vizinhos, criador de canários belgas, resolveu envenená-lo depois de descobrir quem estava surrupiando seus belos cantadores das gaiolas. Foram três envenenamento seguidos, sendo que da última vez ele passou três dias em coma, espumando como um rio poluído. Escapou mais uma vez. Foi encarar um cachorro pitbull que lhe quebrou a pata. Ficou meio manco. Nada, porém, o fazia recuar do seu instinto rueiro. Em casa, quando estava tudo tranquilo, peitava os cães domésticos com tapinhas no rosto do Thor, um baita labrador de 40 quilos; e a Mel, uma golden toda dengosa, que adorava rolar no tapete da cozinha com ele. De rolo em rolo, seus dentes foram caindo. Sobrou-lhe apenas um, cumprido e do lado esquerdo da boca, o que lhe dava um aspecto nosferatum de ser. Até que uma estudante de odontologia em visita a casa amarela, sua principal residência, resolveu cutucar o “único” e o cujo ficou em sua mão. Pronto: além de cego de um olho, manco da pata esquerda, orelha fora de esquadro, Kendji agora era também banguela – e só comia papinha. Até aí, tudo bem. Sua próxima aventura foi apostar corrida com uma das inúmeras motos que sobem e descem a ladeira da Barão. Só que o motoqueiro era novo, se atrapalhou no pega e nosso herói foi atropelado cinematograficamente. A roda da moto deu-lhe um nocaute de esquerda, quebrando-lhe algumas costelas e seu maxilar, deixando sua boca parecida com a do Noel Rosa. Rapidamente os vizinhos se mobilizaram e sua dona o levou para um hospital em Botafogo, onde a diária dos primeiros socorros custava quase 900 reais. Entre a vida e a morte, Kendji deveria fazer uma cirurgia que custaria no total quase seis mil reais. Busca daqui, busca daqui, uma veterinária bahiana indicou um hospital veterinário cujo amor aos animais era bem mais barato. Lá se foi a dona de Kendji atrás de uma solução mais humanitária. O tal hospital ficava em uma comunidade perto de Padre Miguel, subúrbio bem conflagrado na zona Oeste do Rio. Ao adentrar com o seu Suzuki, ela (e o gato estropiado) foi parada em uma barreira por olheiros do tráfico. Crivaram-lhe de perguntas: onde vai? O que deseja? Como assim? Tale e Qual? Etc? Moral da história: “é melhor a senhora cair fora, pois pode perder o carro e o gato”. Nisso, o Bope já estava trocando tiros de fuzis com o pessoal do movimento. Kendji, mais uma vez, conseguiu sair vivo do conflito. Sua dona fez outro caminho até conseguir chegar no tal hospital São Francisco, onde o diagnóstico foi o pior possível: ou opera rápido, ou ele morre. Mas ela não tinha dinheiro pra bancar a cirurgia pra consertar o maxilar e as costelas do Kendji. O que fazer? Vamos sacrificar? Sim, ele sofreria menos. Uma injeção e tudo estaria acabado para aquele aprontão. Mas desta vez, foi o veterinário que se compadeceu do gatuno e resolveu fazer a cirurgia em nome da ciência. Todos, na maioria estudantes buscando vagas no mercado, iriam aprender muito. Depois de uma semana, Kendji finalmente passou pela cirurgia onde perdeu parte da maxilar, ficou de boca caída, todo fora de esquadro, mas depois de uns 10 dias tirou a sonda e voltou pra casa, onde vive cercado de cuidados e de mimos. Mas sempre buscando novas aventuras. Pra ganhar novamente as ruas, já fez de tudo. Tentou fugir pelas janelas, subiu na laje para pular no telhado do vizinho e até se fingiu de morto para ver se alguém esqueceria a porta aperta. O certo é que ele anda preguiçoso, dengoso; só pensa no próximo prato de papinha e nas poucas chances que lhe restam para viver pelo menos mais meia dúzia de vidas. Mia toda hora, todo desafinado. Enquanto isso, fica espreitando uma chance de fuga espetacular. Outro dia, se fingiu de morto, driblou todo mundo, subiu no muro e pulou pra rua. Como chovia forte, voltou imediatamente como gato escaldado. Ou seja: não há mais solução: Kendji vai passar a usar uma tornozeleira eletrônica. Caiu na Lava-Jato.

PALHAÇO

Luis Turiba o palhaço que há em mim não saúda o palhaço que há em ti o palhaço que me habita tem uma lágrima equilibrista pendurada na face que não de dissolve sou o palhaço da perna de pau do olho de vidro da cara de mal sou o palhaço do circo incendiado triste amuado que não ri nem de si um palhaço sem palhaçadas sem cambalhotas sem quermese que perdoa mas não esquece