quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SÃO GONÇALO, CIDADE PRAGMÁTICA

São Gonçalo, cidade pragmática  


Luis Turiba


São mais de um milhão de habitantes de todo canto e nação; e um trânsito indisciplinado que beira ao caótico tráfego da Índia, sem mão nem contra-mão. Perdesse diariamente preciosos anos de vida em intermináveis congestionamentos. "Só Deus na cruz",é o dito preferível para desdizer o caos urbano, uma das característica de São Gonçalo


Para quem chega pela ponte Rio-Niterói e segue pela BR-101, antes da primeira das muitas entradas, vemos um cemitério com aspecto fantasmagórico encravado num morrote. Uma discreta placa anuncia: "propriedade particular". É de arrepiar a espinha.


Embora pareça a "terra de ninguém" que recentemente o ex-presidente Lula chamou de "patinho feio" do Estado do Rio, São Gonçalo tem uma rica, curiosa e diversificada história.


Habitada primitivamente pelos bravos índios tamoios, foi no ano de 1579 que o colonizador Gonçalo Gonçalves se instalou numa fazenda conhecida como Colubandê, hoje às margens da atual rodovia RJ-104. Em 1890, o arraial foi fundado, mas só ganhou status de município em 1929. Em 1943, ocorre nova divisão territorial no Estado do Rio de Janeiro e desta vez, São Gonçalo perde o distrito de Itaipú para Niterói, restando-lhe apenas cinco distritos: São Gonçalo (sede), Ipiíba, Monjolo, Neves e Sete Pontes.  


Antes de falarmos do seu histórico ciclo de desenvolvimento capitalista, vamos saber quem foi o santo que deu nome ao lugar. Segundo o historiador Salvador Mata e Silva, "São Gonçalo é um santo português com culto permitido pelo papa Júlio III em 24 de abril de 1551. Nascido em Tagilde no ano de 1187, freqüentou a escola arqui-episcopal em Braga. Após ordenado sacerdote, foi nomeado pároco de São Paio de Vizela. foi a Roma e Jerusalém. São Gonçalo passou por um período de busca interior e encontrou na experiência popular a maneira de converter pecadores."


O historiador nos revela o segredo do santo da cidade: "Para salvar as prostitutas, ele se vestia de mulher, tocava viola e dançava alegremente, apesar de pregos no sapato, o que feria seus pés. O santo zelava pela virtuosidade das mulheres; organizava, para elas, danças nos dias de sábado até se cansarem. Ele entendia que as mulheres que participassem dessas danças aos sábados não cairiam em tentação no domingo." Como vemos, um santo pragmático.


Pulemos para os tempos modernos. São Gonçalo foi terra de plantio e cultivo de café. Chegou a ter movimentada rede ferroviária que ligava Neves à vizinha cidade de Marica e escoava as safras.   

Tempos depois, nas décadas de 40 e 50 do século passado, inicia-se na região a instalação em grande escala de fábricas e indústrias. Seu parque industrial era o mais importante do Estado, o que lhe valeu o apelido de "Manchester Fluminense" (uma referência à cidade de Manchester, na Inglaterra), caracterizada pelo seu grande desenvolvimento industrial. A linha de trem impulsionava o progresso. Hoje, andando pela cidade, ainda podemos ver pontas de trilhos aqui e ali, memória que um passado glorioso.


Sim, porque em São Gonçalo o capitalismo foi selvagem ao extremo. Sugou até a medula a potencialidade da cidade e deixou para trás o bagaço da laranja. Bagaço esse que ainda hoje corre frouxo para a Baía de Guanabara, poluindo como nenhum outro município esse imensurável patrimônio cultural/ecológico/turístico brasileiro.


As marcas desse desmantelo ambiental estão no dia-a-dia da urbis. Há no centro da cidade, por exemplo, a poucos quilômetros de um grande shopping, um finado riacho que virou valão de garrafas pets e outros lixos plásticos que, de tão compactados e aglomerados entre si, nos dá a impressão que podemos andar por cima sem afundarmos. É o milagre da poluição.


De quarteirão em quarteirão, o lixo urbano se acumula, se multiplica, ganha pernas e parece que sai andando. A cidade, embora não haja estatística oficial, é uma das mais sujas do país. O gonçalense, infelizmente, já se acomodou a sujeira.


Caminhões do serviço de limpeza urbana passam dia sim, dia não e, estranhamente, só recolhem os sacos que estão fechados. Como a cidade tem uma superpopulação de cães de rua, além de cabritos, porcos, cavalos que vivem soltos fuçando esses sacos – coisa de cidade do interior; detritos se espalham pelas ruas e calçadas. O jeito, então, é queimá-lo, o que piora a situação. O ar fica mais poluído por uma fumaça tóxica que ocupa o espaço e causa problemas respiratórios especialmente nas crianças. Um ciclo esse que parece não ter fim.


São Gonçalo tem um lixão, o de Itaóca, que é um capítulo à parte nessa conjuntura de total desequilíbrio ambiental que vive a cidade. Lá trabalham e vivem 400 catadores, com suas famílias, em condições degradantes. Nada, que nem de longe, possa lembrar o lixão do Divino de onde veio Carminha, Max e Nina na novela "Avenida Brasil".


Itaóca fica numa área abandonada de São Gonçalo, lá no fundo da Baía de Guanabara, onde é normal pessoas andarem armadas, ora a serviço do tráfico, ora dos milicianos que também dominam diversos serviços da cidade. Essa comunidade de catadores é muito consciente, tem um grande líder, o Nem, e se mobiliza com facilidade para negociar saídas e alternativas para sua sobrevivência. Recentemente, foram recebidos pela ministra do Meio Ambiente em Brasília.


Paradoxalmente, São Gonçalo também exala a futuro e a progresso. A cidade recebeu às margens da BR que lhe corta estaleiros que constroem modernos petroleiros a serviço do Pré-Sal. É grande a expectativa como cidade-apoio do Comperj (Complexo Petroquímico da Petrobras), que tem previsão de empregar a partir de 2014 mais de 150 mil trabalhadores diretamente, fora os empregos indiretos.

Há ainda a esperança da Linha 3 do Metrô, que sairá da Estação das Barcas rumo a Itaboraí, cidade vizinha onde está se instalando o Comperj. Essa linha passará por dentro de São Gonçalo com oito estações previstas e será construída pelo PAC da Mobilidade, cujos recursos são de 58 bilhões e já foram empenhados pela presidente Dilma. Ou seja: o futuro de São Gonçalo está intrinsecamente ligado a mobilidade para a Copa de 2014 e as olimíadas de 2016.  


Assim - complexa, contraditória e miscigenada - é essa urbis de gente mestiça e trabalhadora, cujo santo padroeiro dançou com damas suspeitas para lhes tirar da vida mundana.

Há quase um templo evangélico por esquina e todas as noites cultos e vigílias com grandes freqüências. Entre as pregações, muitos terreiros de umbanda e candomblé. Um hiper-shopping com out-lets no estilo novaiorquino;  uma super escola de samba que arrasta todos os anos artistas globais; um crime de morte por dia; um soldado para cada dois mil habitantes (a ONU recomenda não menos que um soldado para cada 500 habitantes).


Estrategicamente localizada entre o Rio de Janeiro, Niterói, Itaboraí e Búzios, com 600 mil eleitores, uma zona rural montanhosa e rica, as praias mais poluídas e fedidas do litoral brasileiro, mas que já foram verdadeiras paisagens da melhor natureza dos trópicos. De onde se avista o maciço da Serra do Mar e o Dedo de Deus.


São Gonçalo sobrevive e pede socorro. São Gonçalo respira, suspira, canta e reza. São Gonçalo quer sacudir a poeira do lixo, do atraso, da miséria. São Gonçalo prepara seu grito de independência do Rio e de Niterói, pois seu futuro é inevitável. São Gonçalo, sangonçala: na sala ou com sola!

   

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