Alguns leitores e alguns amigos denunciaram a ausência da África no meu comentário da semana passada, Sua língua. E logo a África, com um bilhão de habitantes e suas mil e 500 línguas. E logo a África, "pasto universal" como disse Castro Alves no poema que empresta o título a este texto: "há dois mil anos te mandei meu grito, que embalde desde então corre o infinito". Só a Nigéria tem 250 línguas, talvez a maior diversidade linguística do mundo, a África do Sul tem onze idiomas oficiais. São cenários desse oceano de falas, que os especialistas organizam polemicamente em quatro famílias (afro-asiáticas, khoisan, nigero-congolesas, nilo-saarianas). Além das línguas faladas, a África é o continente que abriga a maioria das não faladas, ou seja, as línguas de sinais, as sopradas e as tamborizadas.
Ao abordar as falas da África, tenho de reabrir outro tema mencionado no texto da semana passada, as línguas artificiais. No oceano idiomático africano convivem expressões milenares, tanto nativas como colonizadoras, com a invenção de novas articulações linguísticas, ditadas por necessidades de comunicação. Até mesmo os colonizadores inventaram novas formas de se comunicar, como o africânder, desenvolvido a partir do século XVII pelos bôeres (colonos holandeses, alemães, franceses e ingleses), para se entenderem entre si e com os nativos. Sua interface inicial foi o holandês antigo e vicejou no cruzamento com línguas africanas e asiáticas (força de trabalho presente na região) e com outras línguas europeias. Na África do Sul e na Namíbia, o africânder é hoje a língua de comunicação interétnica mais utilizada.
O angolano Pepetela, um dos maiores escritores africanos de todos os tempos (Mayombe, Yaka, O planalto e a estepe), me chamou a atenção para o lingala, língua desenvolvida ao longo do rio Congo a partir do final do século XIX e hoje falada por mais de dez milhões de pessoas na República do Congo, República Democrática do Congo (ex-Zaire), norte de Angola e sul da República Centro-Africana. A maioria das canções dessa zona são em lingala, o que aumenta cada dia mais sua popularidade como língua franca. Ao contrário do africânder, com sua ignição em uma língua colonizadora, o lingala foi sendo formada a partir do bangi, uma língua banto, em conexão com as línguas europeias dos comerciantes e missionários que aportaram na região durante a ocupação belga.
Essa realidade demonstra que o conceito de língua artificial deve ser entendido como o de uma língua construida em laboratório, por alguns poucos linguístas, por "cientistas da palavra", como o Esperanto. O seu antônimo são as ditas línguas naturais (ou ancestrais) e também as línguas que grupos humanos vão inventando e articulando, misturando as existentes, criando novas relações fonéticas com a realidade, com sua realidade. Como são as línguas francas africanas.
E por fim um aspecto exemplar da África no que se refere à sua enorme diversidade linguística e às novas línguas que surgem no turbilhão de sonoridades: a maioria dos países africanos consideram a política linguística um tema estratégico, uma questão vital para o equilíbrio cultural e social dos estados que se formaram na década de 1970 (era pós-colonial) e do próprio continente. São políticas multilinguísticas, um dos símbolos disto é o fato da União Africana, a UA, considerar todas as línguas do continente, as mil e 500, como suas línguas oficiais. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, como está na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou, em lingala, "bato nyonso na mbotama bazali nzomi pe bakokani na limemya pe makoki".
Por Orlando Senna
* Links para textos de Orlando Senna no Blog Refletor
Sua língua 27/09/2013 http://refletor.tal.tv/ponto-de-vista/orlando-senna-sua-lingua
160 Brasis no Canal Futura 20/09/2013 http://refletor.tal.tv/noticias/america-latina/brasil/orlando-senna-160-brasis-no-canal-futura
A Bahia dessemelhante 13/09/2013 http://refletor.tal.tv/ponto-de-vista/orlando-senna-a-bahia-dessemelhante
Dragão do Mar 06/09/2013 http://refletor.tal.tv/ponto-de-vista/orlando-senna-dragao-do-mar
Grafite 30/08/2013 http://refletor.tal.tv/miscelanea/artes-plasticas-2/grafite
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