quarta-feira, 30 de abril de 2014

OS DIAS LINDOS, Carlos Drummond de Andrade

Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos.

E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor. A temperatura ficou amena, conduzindo à revisão do vestuário. Protege-se um tudo-nada o corpo, que vivia por aí exposto e suado, bufando contra os excessos da natureza. Sob esse mínimo de agasalho, a pele contente recebe a visita dos dias lindos.

A cor. Redescobrimos o azul correto, o azul azul, que há meses se despedaçara em manchas cinzentas no branco sujo do espaço. O azul reconstituiu-se na luz filtrada, decantada, que lava também os matizes empobrecidos das coisas naturais e das fabricadas. A cor é mais cor, na pureza deste ar que ousa desafiar os vapores, emanações e fuligens da era tecnológica. E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia.

O ar. Ficou mais leve, ou nós é que nos tornamos menos pesadões, movendo-nos com desembaraço, quando, antes, andar era uma tarefa dividida entre o sacrifício e o tédio? Tornou-se quase voluptuoso andar pelo gosto de andar, captando os sinais inconfundíveis da presença dos dias lindos.

Foi certamente num dia como estes que Cecília Meireles escreveu: "A doçura maior da vida flui na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo círculo dos dias sossegados". Porque a primeira conseqüência da combinação de azul e leveza de ar é o sossego que baixa sobre nosso estoque de problemas. Eles não deixam de existir. Mas fica mais fácil carregá-los.

Então, é preciso fazer justiça aos dias lindos, oferecer-lhes nossa gratidão. Será egoísmo curti-los na moita, deixando de comentar com os amigos e até com desconhecidos que por acaso ainda não perceberam o raro presente de abril: "Repare como o dia está lindo". Não precisa botar ênfase na exclamação. Pode até fazê-la baixinho, como quem transmite boato e não deseja comprometer-se com a segurança nacional. Mesmo assim, a afirmação pega. Não só o dia fica mais lindo, como também o ouvinte, quem sabe se distraído ou de lenta percepção sensorial, ganha a chance de descobri-lo igualmente. Descobre e passa adiante a informação.

A reação em cadeia pode contribuir para amenizar um tanto o que eu chamo de desconcerto do mundo. De onde se conclui: deixar de lado, mesmo por instantes, o peso dos acontecimentos mundiais trágicos, esmagadores, para degustar a finura da atmosfera e a limpidez das imagens recortadas na luz, é um passo dado para reduzir o desconcerto, na medida em que a boa disposição de espírito de cada um pode servir de prefácio, ou rascunho de prefácio, à pacificação, ou relativa pacificação, dos povos e seus dominadores. Em vez de alienação, portanto, o prazer dos dias lindos é terapia indireta.

Pode ser que o desconhecido lhe responda com um palavrão, desses em moda na sociedade mais fina. Não faz mal. Não se ofenda. Ele descarregou sobre a sua observação amical o azedume que ameaçava corroê-lo no íntimo. Livre desse fel, talvez se habilite a olhar também para o céu e a descobrir mesmo certa beleza esvoaçante no urubu. De qualquer modo foi avisado. Já sabe o que estava perdendo: a consciência de que certos dias de abril e maio são mais lindos do que os outros dias em geral, e nos integram num conjunto harmonioso, em que somos ao mesmo tempo ar, luz, suavidade e gente.

Carlos Drummond de Andrade, crônica publicada no Jornal do Brasil, no final dos anos 1970

terça-feira, 29 de abril de 2014

JOGADA ANTROPOFÁGICA

 

Luis Turiba

 

Foi um lance transcendental, um verdadeiro gol de placa. Ao devorar em segundos um racista em forma de banana, o lateral Daniel Alves repetiu o ritual antropofágico dos índios tupinambás com o bispo Sardinha. Foi vapt-vupt e lá se foi mais um inútil: sabe de nada, inocente.

Daniel, que é Alves, foi intuitivo. Aparentemente não pensou, não elaborou, não blefou, nem teorizou. Agiu como um antropófago faminto em cima de um  prato de feijão com arroz. Como num gol de bicicleta de Pelé ou numa nota musical de Caymmi. Foi um drible de Garrincha em cima dos russos, uma cesta de Magic Johnson, uma levada de mão de Maradona contra os ingleses, um vira-lata diante de um suculento osso. Materializou o sonho de Martin Luter King num samba de Cartola: bate outra vez esperança no meu coração.

No seu gesto nada inocente está presente toda a malandragem brasileira. Mineirinho e Cara de Cavalo queimando ônibus no Complexo do Alemão. Seja marginal, seja herói. Alegria é a prova dos nove. O instinto Caraíba. Só me interessa o que não é meu.

Foi assim que o lance já nasceu genial, viral, cyber-espacial. Já é uma peça publicitária contra otários. Um lance de Chacrinha: vocês querem bacalhau ou bananal? Carmem Miranda e Oswald de Andrade.

Ali na zona do agrião, onde se bate escanteio sem receio, ele comeu e nem mastigou. Nem tampouco tomou conhecimento do babaca que lhe arremessou o alimento forte em potássio. Aquele projétil agressivo lhe é familiar, faz parte do paladar coletivo de todo moleque brasileiro. Paladar degustativo e social. O juiz não teve outra alternativa a não ser escrever na súmula: devorou uma banana como um húmus.

Como um craque de pelada, Daniel inverteu a ofensa. Banana agora é sinônimo de racista e será devidamente comida toda vez que aparecer num estádio. Sabemos que naquela banana impura habitava um Hitler com toda sua teoria de raça pura. De sobra, como uma cobra, ele devorou também todos os remanescentes da Ku Klux Klan soltos na Europa branca e decadente e os racistas de todas as matizes.

Daniel sabe que banana, menina, tem vitamina, banana engorda e faz crescer. Por isso, seu gesto foi tão simbólico, tão genial e generoso, forte e intenso. Acho até que ele não pensa como Neymar, seu colega de Barça e de barca. Não somos todos macacos não. Estamos mais para aquela versão de Miriam Makeba: "eu não sou macaco, mas eu gosto de banana."

Nanica, prata, d'água, da terra ou padrão Fifa, banana é banana e Daniel é um negro-mestiço de olhos verdes, como são os gramados de futebol. E com esse lance, vencemos a primeira partida da Copa no Brasil. Se vai ou não vai ter Copa, o resto é bola, é futebol.

 

 

 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A TECNO-BOSSA DE GILBERTO GIL

 

Por Luis Turiba

 

"Há cada 100 anos um mestre aparece entre nós(...) E a cada 25 um aprendiz", Gilberto Gil

 

A ideia de gravar um CD com sambas habitou a cabeça do mestre Gilberto por mais de dez anos. Quando era ministro da Cultura no primeiro governo Lula, ele parou de compor, começou a falar do assunto e a pensar num provável repertório digno para tal projeto. No dia 11 de fevereiro de 2003, em pleno carnaval, Gil recebeu em Recife um livro que lhe deixou muito entusiasmado: "A Pré-História do Samba", do pesquisador Bernardo Alves. Descobriu ali que samba é (também) uma palavra tupi-guarani e que a primeira roda de samba brasileiro foi feita entre índios e portugueses no dia que Cabral desembarcou em Porto Seguro. Há 500 anos. Vida que segue....

 

Onze anos depois desse episódio significativo, quando as cortinas se abrem no Teatro Net do Rio de Janeiro para o espetáculo "Gilbertos Sambas, lá está ele sentado num banquinho, violão virtuoso em punho, cercado por músicos-meninos. Começa o concerto cantando "Aos pés da Santa Cruz"  e a gente logo se lembra de João Gilberto. A certeza de que ali está um seguidor, um prosseguimento tropicalista/pop do mestre da Bossa-Nova vai se confirmando a cada nova canção.

 

Gil materializou sua musa via João. Sabemos que ele nunca foi de começar show sentado em banquinho. Sempre foi explosivo, dançante e de cara sacudia seu público. Mas agora está diferente. Não teve aquele clássico "boa noite, Rio" ritmado nas palmas do público. No palco a reverência, a concentração, o samba contido, a batida do seu violão gilberteano.

Mas o bom ouvinte, logo percebe que há uma batida pop-tecnô por trás daquele releitura, uma espécie de homenagem também aos índios tupinambás que receberam os portugueses com sua percussão. Sim, ao revisitar as bossas-sambas de João (e suas próprias), Gil avança, quer no canto altamente concentrado, pesquisado e sofisticado até onde a voz alcança; quer nos arranjos combinados com o filho Bem Gil.


São muitas ousadias nessa nova musicalidade do mestre. Discretas, algumas quase imperceptíveis, mais todas mexem muito com a gente. Fica no ar aquele gostinho de quero mais. A começar com o canto eletrônico de "O Pato" (Jayme Silva e Neusa Teixeira, 1960) e suas brincadeiras com a plateia. Neste número, o acordeom de Mestrinho faz a diferença, assim a percussão de Domenico Lancellotti; e os efeitos especiais de Bem Gil. 


Ao cantar a música ícone do movimento Bossa Nova de João Gilberto, "Desafinado", a ousadia sonora tecnô de Gil e seus meninos alcança  "vôo de brigadeiro" sem desafinar. Há sons urbanos, ruídos esquisitos crescentes e há até quem tenha ouvido uma sirene de ambulância e/ou polícia, mas nada disso incomoda ou estranha, ao contrário; entranha e nos insere corajosamente no hino.


No show, Gil vai além do CD  e termina se soltando conforme avança. Ao cantar "Rosa Morena", de Dorival Caymmi, samba lançado em 1942 pelo conjunto Anjos do Inferno. Aliás, dizem que é Caymmi é quem guia Gil até João. Forma-se assim a Santíssima Trindade da música baiana. Isso fica claro em Milagre, quando Moreno Veloso entra em cena para o auxílio luxuoso dos sons extraídos de um prato, coisa que ele aprendeu com Dona Edith no Recôncavo Baiano.


Ao voltar para o planejado bis (teve até estudos nas redes sociais sobre as músicas que seriam cantadas), Gil reencontra dois de seus grandes sambas. "Eu vim da Bahia" gravado magistralmente por João e o clássico "Aquele Abraço", feita na sua despedida para o exílio, quando os milicos lhe mandaram para Londres. Mas seu Rio de Janeiro já havia sido saudado antes, com a apresentação do novo samba "Rio, eu te amo", uma declaração à cidade tão contraditória, onde ele explora e brinca com os dois sentidos da palavra rio (a conjugação do verbo rir) e o choro (conjugação do verbo chorar). A samba é tão gostoso que a plateia apreende rapidamente seu sonoro refrão e já o canta em cena, batizando-o assim como um clássico precoce. É mais um samba de sucesso na certa, de um Gil gilberteano que continua na estrada a caminho dos 72. Para a roda ficar melhor só falta qualquer dia desses João chegar numa de suas apresentações e entrar em campo para bater uma bola com o mestre-aprendiz. 

 

 

 

SERVIÇO

 

Agenda da turnê nacional do show Gilbertos samba:
* Rio de Janeiro (RJ) - 5, 6, 11 e 12 de abril de 2014 no Theatro Net Rio
* Salvador (BA) - 16 e 17 de maio de 2014 no Teatro Castro Alves
* Recife (PE) - 21 e 22 de maio de 2014 no Teatro Shopping Rio Mar
* Natal (RN) - 23 de maio de 2014 no Teatro Riachuelo
* São Paulo (SP) - 19 e 20 de julho de 2014 no Teatro Shopping Vila Olímpia
* Belo Horizonte (MG) - 6 e 7 de setembro no Palácio das Artes
* Porto Alegre (RS) - 19 de setembro de 2014 no Teatro do Bourbon Country
* Novo Hamburgo (RS) - 20 de setembro de 2014 no Teatro Feevale