Por Luis Turiba
Quase meio-dia e eu ainda estava na fila do banco. Tinha que chegar as treze na Central do Brasil para encontrar uma galera e subir o morro da Providência para conhecer a famosa Casa Amarela no topo da favela, uma base de cultura numa área dominada de tráfico. Quinta-feira de inicio do mês é sempre assim: a longa fila dos velhinhos estava sacudida com as rabugices de sempre. Num repente, ela (80) saiu do meio da fila e foi ao encontro dele (89), o primeiro prestes a ser chamado para o atendimento:
- Como vai Seu Jacó? Tá lembrada de mim...
- Claro, garota. Mas você tá velha, heim?! Eu também estou velho, mas você está mais engilhada do que eu.
- E como vai Dona Sarah?
- Também tá velha, mas não morreu ainda, respondeu ele sem poupar sincerismos.
- Trabalhei na loja deles, uma tapeçaria, quando eu tinha 17 anos, confidenciou ela para quem observava de perto o reencontro.
- Mas o tempo passa e deixa a gente assim, parecendo maracujá de fim de safra, disse ele antes de seguir para o atendimento.
O coroa que estava na cadeira ao meu lado, olhou de soslaio e cravou seu palpite:
- Aí tem coisa...
Esse tinha pinta de jovem. Usava pulseiras de couro, um chapeuzinho branco, óculos estiloso, sacolas penduradas nos ombros, lencinho no pescoço. Parecia ter vindo a pé de Woodstock.
- Com língua e dedo ninguém fica imprestável, completou baixinho com olhar sacana.
A fila andou e me piquei pro metrô no rumo Central onde iria encontrar a galera do coletivo Viajantes do Território para subir o Providência, a mais antiga e central favela do Rio de Janeiro, em missão cultural. O entorno da Central ainda me assusta, pois parece um pouco a Índia com gente de tudo quanto é tipo circulando apressadamente pra tudo quanto é lado. Se tentar usar celular naquele mafuá, dança.
Finalmente nos reunimos no ponto combinado sob o comando de Egeu Laus, o comandante dos Viajantes. Éramos 12 e partimos em busca de uma Kombi velha, cujo teto mais lembrava um assoalho sem o carpete retirado na força e na marra. Seis conseguiram entrar e os outros ficaram para a próxima viagem. A Kombi velha engilhada ia se arrastando pelas ruelas estreitas de paralelepípedos onde mal passava um fusca. Demorou bem meia hora até chegar na subida. A Kombi velha está acostumada com aquela ladeira de curvas fechadas e ainda é o melhor meio de transporte para os moradores do morro quando o teleférico para por manutenção ou guerra entre traficantes. Paga-se pela viagem três reais.
A Kombi velha engilhada que já teve 17 anos nos deixa na Estação do Teleférico. De lá, nossa guia nos leva até o Bar da Jura que fica em baixo da estação, de onde avistamos toda a baía da Guanabara, a ponte Rio-Niterói, a Cidade do Samba e os novos prédios envidraçados da Odebrecht que surgem aos borbotões na Zona Portuária, além de uma parte da comunidade com intrincados corredores onde não se deve fotografar pois o movimento é intenso.
- Sabe como é, né: depois você pode passar pelo constrangimento de ter que apagar a foto, e isso não é legal", explica Dona Jura que faz um inhoque com camarão de tirar qualquer freguês do sério.
Ela distribui cartões para todos e avisa:
- É só ligar e encomendar o que vai comer. Pode trazer a família, amigos, subir na paz que estamos aqui para recebe-los. É só avisar antes de subir.
Começamos a entender ali como se desenvolve o dialético equilíbrio entre os diferentes negócios do morro da Providência: cada um vende o que tem e o que pode. Cada qual, a sua maneira.
Finalmente, chegam os Viajantes retardatários. Um dos jovens que trabalha na Casa Amarela, o Douglas Oliveira que aparenta ter seus 18 anos, vai nos guiar na visita que começa pela sacrificante subida da escadaria, com seus 162 degraus, quase todos grafitados com letras de Raul Seixas e Cazuza. Aquela subida será para minhas cansadas panturrilhas uma prova de fogo. Afinal, estão elas em tratamento no hospital Sarah de Brasília. Os pulmões e o coração resistiram bem, mas as canelas chegam lá em cima quase sem fôlego. No caminho, passamos pelos meninos que fazem o atento trabalho de permanente observação. Cochilou, o cachimbo cai. Um deles, com pouco mais de 16 anos, trabalha com quatro celulares e dois walk-talk. Armas não aparecem, mas se insinuam.
A Casa Amarela, com seu três andares, parece uma obra de Gaudí dos trópicos. Ela é costurada de ripas de madeira e aqui e ali pequenos barracos aparecem como torres. O projeto começou em 2008 graças ao fotógrafo francês J.R. que hoje mora em Nova Iorque. Na época, ele ensinou fotografia aos jovens da favela. Hoje existe ali um Cine Clube, aulas de inglês para as crianças da Providência, cursos de Grafiti e até um projeto para extrair energia de legumes. Muitas artistas estrangeiros passam pela casa com oficinas voluntárias e importantes doações.
Visitamos a exposição permanente de fotografia, as dependências internas grafitadas e ouvimos com a maior atenção uma palestra sobre Sustentabilidade na Favela feita militante Aline Mendes, 38 anos, que trocou seu emprego certo ("mas chato pra caralho") em um cartório do Rio pela aventura de ser uma empreendedora no morro da Providência. No cartório, ela abriu uma gaveta para "as boas ideias", onde ia guardando informações preciosas que mais tarde foram fundamentais para seus projetos de mapeamento, Ecopontos e Calendário para o Providência Sustentável, que teve o apoio da prefeitura e do Sebrae.
Com uma alegria transbordante, Aline nos conta como deu seu grito de independência do Seu Barriga, seu antigo chefe no cartório: "Tudo eu anotava: água, luz, pessoas, ruas, tudo, tudo. Andei toda a favela chegando a ir a lugares proibidos como a Pedra Lisa, onde a barra é muito pesada. Vi moradores lavando suas portas do sangue derramado na guerra entre as facções do tráfico. Passei muito perrengue mas cheguei a ser chamada de maestrina de obra, pois criei meus filhos e construí com minhas mãos a minha própria casa virando massa todos os fins de semana. Quando resolvi pintar o Escadão, tive que pedir autorização a UPP e eles noticiaram isso como obra social deles. Fiquei apavorada, pois corri o perigo de ser pega pelo tráfico e levada ao tribunal."
Fim de tarde. O céu se fecha, as gaivotas sobrevoam em bando e círculos nossas cabeças e a chuva ameaça cair. Aproveito o intervalo e deixo a Casa Amarela para trás, seguindo com um casal de visitantes. Como na subida, também somos observados na descida por olheiros espalhados na área. Na estação do Teleférico, esperamos a velha e cansada Kombi por mais de 20 minutos na certeza que estamos na mira de binóculos e outros tipos comunicações, pois somos seres estranhos àquele ambiente.
Finalmente, a Kombi chega. Entramos, sentamos e pagamos. Antes de partir na sua venturosa descida, ouvimos gritos e o motorista freia e deixa o veículo parado na esquina fronteiriça entre o topo e a ladeira. Um jovem recém saído da adolescência chega junto, sussurra algo no ouvido do motorista, dá uma geral no ambiente interno e libera a descida. A velha e engilhada Kombi já não tem 17 anos, mas tem lá o seu valor.
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