segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O MELHOR DA FLIP FOI NAS RUAS

 Luis Turiba

Uma festa literária que se esparrama para além das páginas dos livros e dos pensamentos dos pensadores. Essa é uma das essências mais marcantes da Flip, que nos últimos 12 anos tem transformado por três dias a histórica cidade de Paraty, na região sul do Rio de Janeiro, numa espécie de quermesse de letras, palavras, sons, papos-cabeças, paladares, conhecimentos, ideais.

Vive-se cenas múltiplas com cortes, flashes-back, efeitos especiais, fundos musicais, ousadias e muito bate-perna. O mundo esteve presente ali com o seu melhor e o seu pior, com o apadrinhamento do filósofo Millôr Fernandes, o patrono-homenageado da farra.

Pois então: voltando para casa onde nos hospedamos num condomínio gracinha na rua do canal, já cansados no início da madrugada; um tanto o quanto "borrachos" pelas duas garrafas de Trapiche argentino esvaziadas no restaurante Thai Brasil, lá vamos nós, abraçadinhos, narizes gelados, casacos fechados até o pescoço para proteger-se do frio de 13 graus, atravessando a ponte das bandeiras que une o fuzuê da praça à tenda principal.

Vindo do lado contrário rumo à praça surge o escritor José Resende, contista brasiliense e um dos textos mais suaves da minha geração de Brasília. Abraços trocados, apresentações feitas, fica no ar o convite: "Amanhã às duas faço recital no Café Literário do Off Flip. Apareça!"

Não mais voltei a encontrar o Resende na Flip. Ninguém que chega a Paraty tem muito compromisso com mesas, falas e apresentações de ninguém. A não ser aquelas pessoas (a minoria) que tem tickets previamente comprados para essa ou aquela apresentação. Quem não tem, vai aos telões e andar pela cidade.

Todos, porém, têm o compromisso de andar pelas ruas de pedras de Paraty. Elas são arredondadas, cada qual uma obra de arte à parte, poemas geológicos cravados ali por escravos vigiados pelo chicote cantante do colonizador português.

É esse assoalho "desproporcionário" que dá ao nosso andar em Paraty um equilíbrio literário. E todos seguimos felizes pelas ruas, esbarrando em textos e sendo esbarrados por contextos; encontrando-se e desencontrando-se, conhecendo in loco novos autores, leitores, atores, agentes, livros e novos amigos de bons papos e pratos.

Se não voltei a me encontrar com Resende, nem topei com Romildo Guerrante, foram tantos outros e repetidos os encontros com Maurício Mello Júnior, Suzana Vargas, Ancelmo Gois, Ovídio Poli Júnior, Tavinho Paes, Chiquinho Amaral, João do Corujão da Poesia, Sergio Léo e Marta Salomão, Maria Cristina Andrade, que me senti na tribo. Sempre ao acaso, o que dá a sensação de libertação. Planejado mesmo, só o recital que fizemos no Café Literário da Off Flip, no Clube dos Autores.

Então é isso: quando a fome bate, andarilhos entram em alguma pequena porta. Assim, como num lance de dados, descobrimos o sofisticado Thai, gastronomia tailandesa apimentadíssima, onde ouvimos uma maravilhosa bossa-nova em sax e violão, tendo na mesa ao lado o poeta-cronista Jose Miguel Wisnik.

Tudo acontece nas ruas festivas de Paraty. Na porta de um outro restaurante, o líder yanomami Davi Kopenawa, dá entrevista para uma rádio francesa. Ali perto, índios guaranis são redimidos e redescobertos com seus balagandãs artesanais multicoloridos. Uma passeata aqui, um batuque de maracatu acolá; um sapateador argentino a suar a camisa para ganhar trocados; e aqueles carrinhos de doces que quebram os regimes mais disciplinados.

E assim caminha a Flip com papos afinados e conversas afiadas por entre pedras redondas. São nessas ruas de arquitetura colonial, luzes de mistério e ares de história, que as falas, conceitos, polêmicas, provocações de cabeças pensantes e realizadoras como Pérsio Arida, Glenn Grenwald, David Carr (New York Times), Eduardo Viveiros, Bernardo Kucinski, Marcelo Rubens Paiva, o poeta Charles Peixoto e a escritora Fernanda Torres com suas tiradas hilárias, ganharam ecos, reproduzindo-se até o sapato furar de tanto andar. Conversa também andam e ruas terminam repercutindo as tendas. 

Me lembro: na minha primeira Flip, há 10 anos, entrei em Paraty de charete na carona do ministro Gilberto Gil, de quem era assessor. Ouvi então Chico Buarque homenagear Vinícius de Moraes. Dez anos depois, volto de carro e ando a pé na multidão, revezando dois pares de tênis: um para a prosa, outro para a poesia.

Só assim pude entender que em terra de Millôr, o bom humor reina. Está nas ruas, mesmo que nasça em tendas. Em Paraty a praça ainda é o melhor e o grande palco. E é no ti-ti-ti que a literatura se faz viva.

 

Um comentário:

Romildo Guerrante disse...

Gostei demais do texto. E das observações. Foi mais ou menos o que senti. A lamentar apenas não ter encontrado você, Turiba. Teríamos bebido três ampolas do malbec argentino...