segunda-feira, 12 de setembro de 2011

GLÓRIA BOMFIM, UMA HISTÓRIA LINDA QUE VALE A PENA SER REDIVULGADA

A viagem e as viagens de Glória

Carolina de Hollanda
Glória na foto da capa do disco
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Helena Aragão e Monica Ramalho


Glória Bomfim está prestes a engrossar a lista de cantoras que só estréiam em disco após algumas décadas de vida. O álbum 'Santo e Orixá' será lançado este mês, quando a baiana completa 50 anos. No repertório, canções de um dos mais produtivos e criativos autores da música popular brasileira – Paulo César Pinheiro – sobre um universo que ambos conhecem muito bem: os rituais e a simbologia do Candomblé. Em poucas palavras, Glória é Yalorixá, cozinheira, mãe de Vitor e dona de uma voz de arrepiar.

Estas frases iniciais poderiam abrir uma matéria ou o release de divulgação do disco, que chega às lojas através do selo Sambaqui, da gravadora Acari Records. O parágrafo conta uma novidade, cita um expoente da MPB, contextualiza minimamente o disco e a cantora. Ok. Mas pode ficar parecendo que ela é uma cantora qualquer, dedicando seu primeiro trabalho a um compositor renomado. Definitivamente, existe um jeito melhor de contar essa história.

Década de 80. Glória prepara o almoço da família para quem trabalha há uns cinco anos, numa casa no Itanhangá. Como sempre, cantarola enquanto mexe as panelas. Talvez guiada pela música, a patroa entra na cozinha e diz, em tom de brincadeira:

"Pára de puxar o saco do seu patrão, menina!"

E Glória pára mesmo. Fica pálida. Se apressa em terminar logo o serviço, enquanto tenta compreender o que acabou de ouvir. Que história era aquela? Como assim 'puxar o saco do patrão'?, pensa, tremendo. Luciana Rabello, que, além de patroa de Glória, é a compositora e cavaquinista casada com Paulo César Pinheiro, fica meio pasma com a reação da empregada, e explica:

"Essa música que você estava cantando se chama 'Viagem' e é do Paulinho, seu patrão, em parceria com o João de Aquino, ora!"

Ora, ora, ora! A notícia foi impactante demais para Glória. Emocionada e nervosa, ela foi embora daquele dia de trabalho atordoada. "Foi um choque tão grande que sumi", rememora. Luciana teve que ir à cata da moça. Quando conseguiu reavê-la, teve a dimensão do espanto dela.

Desde os primórdios, sumir era a especialidade de Glória. "Eu trabalhava como manicure em Copacabana e uma cliente se mudou pro condomínio onde a Luciana e Paulinho moravam. Para continuar atendendo a moça, coloquei a condição de só me despencar até lá se ela me arrumasse mais clientes. Assim fui fazer as unhas da Lu, mas a gente bateu de frente (risos). Na primeira vez, Julião, que tinha só dois meses, acordou. Luciana foi para o quarto e acabou dormindo. Eu fiquei esperando horas até que fui me embora", lembra, às gargalhadas. Segundo filho do casal, Julião Pinheiro é hoje violonista e também estréia em gravação neste disco da Glória. A primogênita é Ana Rabello, cavaquinista como a mãe, que também participa do álbum fazendo coro.

Só que Luciana não havia pago o serviço e procurou muito pela Glória. "Fiquei parecendo o Saci Pererê porque faltou fazer um pé", diverte-se. "Luciana me convenceu a voltar um dia. O bebê acordou de novo, mas dessa vez fui fazer a unha lá no quarto. Quando entrei, ele me conquistou com um sorriso". Um pouco depois, Glória foi convidada a trabalhar na casa três vezes por semana. Na época, ela ainda vendia bolsas e fazia unhas, mas achou que daria para conciliar essas atividades. "Eu cuidava deles até às 15h, então nem eu sabia que eles eram músicos, nem eles sabiam que eu cantava", fala Glória.

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Vamos então juntar as pontas. E entender como essa coincidência – assustadora, em princípio – se desdobrou na realização de um sonho tão antigo: um disco.

Maria da Glória Bomfim dos Santos ("Glória Bomfim é nome de guerra", conta ela, um pouco encabulada) nasceu em Areal, interior da Bahia, no dia 3 de novembro de 1957. [Postamos este texto no dia 2, bem pertinho da festa de 50 anos].

Aprendeu a cantar ainda na infância para acompanhar os irmãos, músicos amadores. Eram todos do Candomblé, então logo fez o santo. Cantarolava nos rituais, mas também soltava a voz nas festas em outras cidades pela farra, em geral sem receber nada, só o lanche. "Eu tinha uns oito anos e já cantava em casamentos, aniversários, batizados. Meu pai era comerciante e, assim que chegava em casa, já de madrugada, ligava o rádio. Eu ficava ouvindo aquelas músicas... Foi assim que aprendi 'Viagem'. Aliás, fiquei conhecida como 'a menina da Viagem'".

(Opa! Agora deu para entender a emoção de Glória ao descobrir que cozinhava para o autor daquela música... Mas não foi só isso. Luciana esmiúça: "Ela me disse não acreditar que alguém inventasse música e, menos ainda, que tivesse trabalhando na casa do criador daquela que a acompanhava desde criança. Eram dois fenômenos: Glória achava que músicas não eram feitas, mas que apenas existiam como as cantigas de santo de Candomblé. E não imaginava, absolutamente, que estava há quatro anos convivendo com o autor de sua maior lembrança!". Durante a entrevista, Paulinho apareceu na varanda confirmando tudo: "Essa foi a minha primeira música como profissional. É simbólica para mim. E, pelo visto, para Glória também").

Seguimos no flashback. Os pais de Glória se separaram e ela foi morar em Salvador. "Minha mãe me deu para uma família que havia prometido me dar estudo. Na verdade, eu tomava conta dos filhos da madame. Não teve estudo coisa nenhuma. Eu fui pra cozinha". Meses depois, conseguiu voltar para a casa da mãe. Não por muito tempo. Este período da infância beirando a adolescência foi marcado por temporadas em casas de estranhos e de outros familiares. Quando estava em Areal, recomeçavam as cantorias nas festas populares, quase sempre levada por um rapaz chamado Tutu.

Só aos 13 anos a menina conseguiu um emprego de verdade, numa chácara de Salvador. "Nessa casa fiquei mais tempo porque ganhava direitinho". Glória se entendia com a patroa, Josilda, mais conhecida como Nona. "Ela me perguntou o que eu queria de presente. Pedi uma passagem pro Rio de Janeiro". O desejo foi prontamente atendido e Glória ganhou, ainda, uma morada provisória: a casa de Josenilda, irmã da patroa soteropolitana. Atrás dos truques culinários, Glória trazia uma especiaria rara na algibeira: o canto ancestral. Quem sabe não seria desta vez que trocaria as receitas pelos palcos?

Antes de cada sonho existe uma estrada. Alguns empregos atravessaram o caminho de Glória – um deles, na casa do 'trapalhão' Renato Aragão, onde ficou por cinco anos. Aliás, vale lembrar de um episódio cômico: no primeiro dia de trabalho, ela foi abrir a porta e não entendeu nada quando viu o Didi entrar na casa. Ela tinha visto na noite anterior aquela clássica imitação que ele fazia de Maria Bethânia e caiu na gargalhada. Depois, Glória viajou até São Paulo para cantar 'Lama', de Mauro Duarte, o Bolacha, no programa de calouros do Silvio Santos. Lá conheceu Benito de Paula e foi convidada para fazer uma participação especial num show dele, numa casa de shows no Leblon carioca. ("Mas sou tão azarada que no dia combinado a casa pegou fogo!"). A estrada também contabiliza muitas incursões aos pagodes da Portela, nos anos 80.

Quando pediam para ela cantar alguma coisa nas rodas portelenses, Glória quase sempre pescava alguma música de Pinheiro da memória, como "Canto das três raças" e "Mãos vazias". Mestre Marçal, que foi uma espécie de conselheiro e a chamava carinhosamente de 'Baianinha', vivia dizendo: "Um dia tenho que te apresentar pra esse compositor que você gosta tanto!". Glória não entendia muito bem, mas não ligava. E mal sabia que, àquela altura, já preparava a comida do tal compositor todo dia!

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Quando a cozinheira descobriu a identidade nada secreta do patrão e desapareceu, fazendo com que a patroa fosse atrás dela, algo muito sutil mudou na relação delas. Luciana e Glória viraram amigas e confidentes. "Eu percebi que ela ficou muito emocionada. Encheu os olhos d´água e tudo", recorda a cavaquinista. "Só aí tive coragem de contar pra ela sobre essa vontade de cantar pra valer", diz a cozinheira. Atrás do fogão ou com a voz à frente das rodas de samba tão comuns no quintal da família musical, Glória se assumiu como cantora. Luciana queria oferecer mais e prometeu que, um dia, produziria o disco da baianinha.

O tempo passou. A cavaquinista fundou a Acari Records, especializada em choro (em dobradinha com o violonista Mauricio Carrilho), e o selo Sambaqui, dedicado ao samba. Paulinho continua compondo aos borbotões e lançou seu primeiro CD cantando músicas próprias em 2004. Para este ano, já estava planejado fazer o segundo disco no mesmo estilo – só que totalmente voltado para canções de santos orixás. Foi quando veio o estalo: "Percebi que a Glória tinha mais a ver com esse repertório do que eu porque ela tem relação com o santo. Sabia que ela cantaria essas 14 músicas muito bem porque é a vida dela", afirma ele. "Não foi uma coisa de generosidade pura e simples. Achei que seria importante para as músicas".

Luciana faz que sim com a cabeça e revela os dilemas que enfrentou para pensar o disco. "Você acredita que cheguei a ouvir coisas como 'agora você tá lançando disco até da sua empregada?' Por essas e outras, fiz questão de escrever um texto bem neutro no encarte, sem toda a emoção dessa história de vida nossa. Até porque acho que ela é a cantora que estávamos esperando para esse disco, é um disco forte independente dos bastidores. Vejo uma energia que não encontro por aí. Uma emoção que sinto ouvindo Clementina de Jesus e Alberta Hunter, por exemplo. Glória tem muito o que mostrar para as cantoras que estão surgindo. Em geral, elas aparecem atreladas a um modismo, seguem um padrão estabelecido. Cantar não é tudo isso que vocês estão imaginando. É um pouco mais!", dispara.

Glória provou o que Luciana diz em estúdio. Era até esperado que ela demorasse um pouco para se entender com microfone e a técnica que envolve uma gravação. E sabe o que aconteceu? Ela tirou de letra. "Ela agiu com muita naturalidade e apesar do volume, ela tem um controle da emissão da voz fora de série", atesta Luciana. Glória ouve a patroa e agora também produtora contar isso com um sorrisão na boca e arremata: "Pois é... Agora está caindo a ficha. Vou realizar meu sonho aos 50 anos!". Pensa mais um pouco e arremessa: "Acabou, gente? Achei a entrevista um 'must', mas posso terminar de fazer o almoço?". Gargalhada geral e lá foi ela para a cozinha. Mais quinze minutinhos e provamos os dotes da cozinheira, cujo tempero é saboroso como uma boa música. Aliás, quer saber qual foi o prato principal? Um peixe com nome de instrumento: Viola!

Gravado entre maio e julho de 2007, com produção de Luciana Rabello, o álbum 'Santo e Orixá' traz 14 faixas, entre elas 'Ogum menino', 'O mais velho' (essas duas primeiras com trechos disponíveis neste texto), 'Bambueiro', 'Revolta dos Malês' e 'Encanteria'. Luciana diz: "Ainda estamos escolhendo um lugar pra lançar o disco, que está na fábrica. Todos os músicos (como violonistas João Lyra e Luís Flávio Alcofra, o bandolinista Pedro Amorim, os percussionistas Paulino Dias e Celsinho Silva e a flautista Naomi Kumamoto) gravaram por amor à Glória, imbuídos desse espírito de dar um presente a ela, mas acho que é ela quem está nos dando um presente. Glória vem para preencher uma lacuna importante. É a voz do povo".


 

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