O lance do Zuca
Por Francisco Alvim
Corriam os anos finais da década de 50. Frequentávamos, os dois, o curso preparatório para os exames do Itamaraty, em Botafogo. Ali nos tornamos amigos, grandes amigos para toda a vida.
Já praticávamos a poesia e logo me dei conta da natureza singular de seu talento, da originalidade de seu caráter e modo de encarar a vida.
Zuca tinha um Fusca azul lavado, em que corríamos a cidade — o nosso, para sempre nosso, Rio daqueles anos.
Guiava mal e seu estilo de dirigir repetia o de nossas absorventes conversas, que giravam em torno de tudo, de modo ziguezagueante e errático. Choviam buzinas e impropérios. Nunca o vi perder a calma. O máximo que se permitia era um ora ora, vá tomar banho, amolar o boi.
Nessas andanças, chegamos a compartilhar eventos memoráveis, pelo menos para nós, não sei se para alguém mais. Como da vez em que assistimos a dança dos garçons num cabaré da Lapa, subitamente convertidos em meia dúzia de covers de Carlitos. Zuca apreciava impávido, com seus modos bem educados e discretos. Eu deixei-me entusiasmar um pouco demais. Resolvi pentear o cabelo com um pente marca Flamengo que escapava do bolso de cidadão sentado à minha frente. Atravessamos incólumes e solidários, sem maiores conflitos, aquela zona de turbulência.
Ou numa alta madrugada do verão carioca, ao lobrigarmos à nossa frente um conversível guiado por Antônio Maria com Vinicius no bojo, que singrava devagar os meandros de um trajeto caprichoso. A rota incerta devia-se ao bando de cachorros que ia atrás de uma cachorra no cio. Os cães de língua no chão, como é de praxe acontecer aos machos de qualquer espécie em tais circunstâncias.
Ou ainda as vesperais musicais do antigo Bar Alpino, no Leme, um casarão tirolês com fachada em V invertido, em cujo vértice situava-se uma diminuta sala de cinema. Acessava-se a salinha por uma escadaria externa em diagonal que subia do chão até o teto e terminava numa portinhola de relógio cuco. Dentro do casarão, o amplo salão térreo não destoava. Pé direito alto, árvores copadas e viridentes, de grossos troncos, das quais pendiam pomos vermelho-vivo, tudo em estuque primoroso. Uma floresta bávara. Ali dávamos expediente pelas tardes, ao som de um quarteto — piano, contrabaixo, violino, flauta? — que trajava, pasmem, casaca.
Em meio a tais aventuras e cenários, coube-me a experiência inesquecível de conviver com um humorista de grosso calibre e de acompanhar os anos moços da criação de uma obra sem par em nossas letras.
Zuca, que reside há muitos anos em Hamburgo, vem ao Brasil em julho, para participar de mesa da Flip com o confrade Nicholas Behr e para lançar pela Cosac Naify, "Ximerix", livro de poemas.
Livro dominantemente de adivinhas, destinado a encontrar respostas para as "lupercais fantasias" dos que irão consultá-lo. I Ching caboclo, dublê de oráculo de realejo, "em cinco cadernos", que tem por fundamento o confronto físico, metafísico e patafísico com a "indigitada das gentes" (para lembrar Manuel Bandeira) a permear o balanço de poéticas e ideologias dos tempos bicudos que coube ao poeta viver.
É preciso ler os versos de "Ximerix" no registro didascálico de apotegmas, bustrofédons, burlas e aforismas, como quer o autor.
O livro constitui-se ademais numa hilária sátira de estilos. O leitor com bom ouvido há de reconhecer nele desde os timbres da fábula clássica, da prosa libertina e dissoluta do século XVIII francês (tempos da Regência e do Divino Marquês, particularmente caros a Zuca), do lirismo do alto e baixo romantismo, até o das figurações mais e menos herméticas do simbolismo, seguidas das marmóreas do parnasianismo, tudo naturalmente revirado na técnica bustrofédons.
O alvo é o leitor que queira ter um molho de chaves que tranquem mais do que abram os significados e os sentidos; ou que os abram mais do que fechem, quando se supõe o contrário.
Porque na realidade o que todos desejam mesmo é ter todas as respostas. E Zuca ri e nos faz rir disso.
Joguem as adivinhas, formulem suas "lupercais fantasias" e vejam no que dão. Para isso só se precisa seguir regra muito simples; e de dois dados.
Francisco Alvim é poeta
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