COM A SELEÇÃO, APESAR DA FRUSTRAÇÃO
Mauricio Murad, sociólogo
Pode ser um erro misturar a seleção com os desmandos e negociatas dos governos, do Comitê Organizador Local e dos cartolas. Se fosse certo fazer isso, não poderíamos jamais torcer e nem vivenciar a nossa maior paixão coletiva - seleção e clubes -, já que todos os poderosos tentam usar o futebol politicamente. Mas é bom não esquecer, que isto foi somente depois que o futebol conquistou a "alma popular", de uma maneira única e definitiva, a partir principalmente das décadas de 1930, 40, 50, 60 e se tornou o nosso maior evento de massas. O olho grande dos grupos dirigentes sempre cresce em cima de algo que seja muito popular. Assim, a equação é simples: o futebol antes de ser usado por aqueles que dominam a economia e a política, foi uma conquista, uma afirmação das camadas desfavorecidas da sociedade brasileira, fator cultural de resistência e de enfrentamentos simbólicos. A história do nosso futebol é um capítulo da história de nossas lutas sociais. Lutas de resistência, de inclusão, de inserção - social, racial, de renda, de escolaridade. Lutas de afirmação e tentativas, mínimas que sejam, de soberania da chamada "cultura popular", numa sociedade elitista, hierarquizada, preconceituosa e excludente, em seus fundamentos históricos, organização estrutural e modos de ser. Então, o futebol não é "deles", é "nosso". Mas, isto não significa que devemos esquecer ou deixar pra lá as chagas de nossa vida social, que ficaram muito evidentes com a Copa. Temos, sim, é que manter a nossa consciência viva e usá-la nas horas devidas e que bom que o futebol ajudou nesse sentido. Devemos ser contra a corrupção, a impunidade, as desapropriações, os acidentes de trabalho pelo corre-corre das obras, o super faturamento, a irresponsabilidade e todos os arranjos e conchavos de interesses privados e públicos, em relação à Copa do Mundo. É contra a corrupção, não é contra a seleção – proclamava com sabedoria uma faixa esticada nas manifestações de junho de 2013. A saúde, a educação, a justiça, o congresso, os governos no Brasil, infelizmente, são marcados pela corrupção e pela impunidade, mazelas históricas e estruturais de nosso país, colonizado e escravista por séculos. Nem por isso, podemos ser contra a saúde, a justiça, a educação etc. Temos que ser contra os descaminhos dessas instituições e a favor da punição dos protagonistas, mas não contra elas, que são componentes de uma sociedade democrática e de direito. O "pecado" não é do futebol ou de qualquer outro fenômeno cultural, mas do uso e do abuso políticos, que fazem dele. Por exemplo, Hitler usou a música de Wagner e o cinema de Chaplin (ideia de Goebbles), artes de destaque na história da humanidade e, claro, nenhum dos dois era nazista. Hitler e o Nazismo passaram e tanto Wagner quanto Chaplin são reverenciados sempre. E tem mais: A história e as pesquisas provam que vitórias esportivas não passam necessariamente para as urnas. Na Copa de 1998, levamos um chocolate da França na final (3x0) e mesmo assim FHC foi reeleito no primeiro turno, ao passo que em 2002, apesar de pentacampeões mundiais, na Copa Coreia/Japão, o mesmo governo FHC perdeu para Lula, o candidato da oposição.
Desde a Copa das Confederações, em junho de 2013, transformada em Copa das Manifestações, pela ação efetiva, independente e salutar das grandes multidões, que tomaram as cidades brasileiras, que tímida e lentamente alguns dos nossos principais jogadores "saíram da toca" e passaram a se manifestar. Primeiro foi o mais emblemático de todos, Neymar, que postou nas redes sociais: "Também quero um Brasil mais justo, mais seguro, mais saudável e mais HONESTO!!! Entro em campo inspirado por essa mobilização... Tamo junto." Agora, um ano depois, às vésperas do Mundial, além de Neymar, outros titulares como David Luís, Fred, Marcelo e Daniel Alves, cada um a seu jeito e modo, direta ou indiretamente, questionaram a impunidade, a violência, o racismo, as desigualdades. E isto sem falar no Bom Senso Futebol Clube, rica expressão no universo do futebol brasileiro, das manifestações de junho de 2013, embora sua gestação já viesse de antes.
A estrondosa e desconcertante vaia nas autoridades máximas do país e da FIFA, na abertura da Copa das Confederações, o hino cantado à capela pelas multidões de torcedores e o coro uníssono de "o povo unido jamais será vencido", em alguns estádios, mostrou um caminho interessante, para o "país do futebol". Além disso, revelou que pode não haver (necessariamente) contradição entre torcer pela seleção e se opor à corrupção. Muita gente que é contra as negociatas e os oportunismos, na hora h, talvez não consiga torcer contra a seleção. Foi assim no tricampeonato de 1970, em plena ditadura, que prendia, torturava, matava. Afinal, futebol é mais do que uma questão de governo e até mesmo mais do que uma questão de Estado, futebol é inconsciente coletivo, é identidade cultural, é patrimônio histórico. E tem mais: a indomável festa popular que vai pras ruas, se a seleção embalar de verdade, pode ser um espaço rico de denúncias, conversas e aprendizados recíprocos. Atuação firme, legítima e democrática, mas pacífica, o que aproxima e amplia os descontentes. O contrário pode afastar as pessoas e isolar os movimentos.
Por isso, torcer contra a seleção poderá ser um equívoco político, gerar o distanciamento e a aversão da maioria "alienada" contra a minoria "consciente". O fundamental é aproximar esses segmentos e deles retirar as aspas. O futebol é uma grande e simbólica oportunidade e a eficácia dos símbolos, muitas vezes, é maior do que a economia e a política. Enquanto as instituições de uma maneira geral, no Brasil, afastam de suas fileiras imensos contingentes da nossa população, o futebol aproxima. Não totalmente, como gostaríamos, mas satisfatoriamente, porque é um espaço e um saber legítimos, democráticos e populares. Com todos os problemas que tem - e não são poucos - o futebol, claro, não é panacéia, solução para os males das realidades brasileiras. Afinal, futebol é somente futebol. Se nem a educação, a justiça, a política, a ética, tudo junto não foi suficiente para superar as nossas profundas desigualdades sociais, de oportunidades, de renda, de acesso e de poder decisório, não seria o futebol a fazê-lo. Mas, se não pode transformar, pode ajudar ou, no mínimo, não atrapalhar.