terça-feira, 24 de janeiro de 2012

DECÁLOGO DA CUÍCA

DECÁLOGO DA CUÍCA

P/ leigos e ligados

Por Luis Turiba

1- A cuíca é, provavelmente, o único instrumento do mundo tocado às
escondidas. Ninguém vê, mas todos ouvem.

2- Tocá-la é fácil, mas muito complexo. Requer tempo, atenção,
agilidade e muito treino. Os dedos de uma das mãos deslizam
molhadamente por dentro do instrumento, apertando a vareta de bambu
coberta pelo latão. A outra mão fica por fora, apertando o couro, com
toques firmes, rápidos e suaves. No meio da mão que está dentro do
instrumento, entre os dedos, vai um pedaço de gorgurão molhado, cujo
impulso "Y" combinado com uma pressão "X" cria sons graves e agudos. O
aperto exterior com o dedo cata-piolho comanda as variações: o tal
tu-tum-tu tum-tu-tu. Daí começa o leva-e-trás, o fuk-fuk. Quando
muitas, produzem uma flutuação sonora como um mantra que bate no
chakra genital das dançarinas que, mesmo não desejando, rodopiam o
corpo em movimentos sensuais. O cuiqueiro vai ao chão para não
frustrar ambas:

3- O corpo da cuíca visto detrás lembra a turbina de um caça de
guerra, com aquela potência supersônica à mostra para vôos
acrobáticos.

4- Seus princípios aerodinâmicos também são complexos. A boca larga
recebe um couro dobrado num arco de madeira (atualmente usa-se também
de metal). Os couros oriundos dos surdos são melhores, pois estão
malhados e pegam melhor afinação, além de permitir a formação de um
bico central como se fosse um umbigo para fora. Esse bico é formado
pela cabeça da vara de bambu e preso por uma linha de resistência
comprovada. Ali, na frente do mundo, o dedo aperta o couro e marca o
ritmo. A mão que fica dentro do bocão dá o tom, marca a levada.

5- Trinta cuícas marcando ao mesmo tempo na sombra dos surdos, das
caixas e dos chocalhos produzem um zumbido espacial sinfônico no
samba.

6- "(...) Na África banta, o tambor de fricção que deu origem ao
instrumento brasileiro chamava-se, em quimbundo, MPWITA (Puía)(..). É
possível que no Brasil, esses nomes tenham sido contaminados pelo
brasileirismo cuíca, do tupi, designação de várias espécies de
mamíferos marsupais, talvez numa referência ao couro utilizado no
instrumento (...) – verbete da palavra no "Dicionário Bando do
Brasil", de Nei Lopes.

7- Cuí@, no fundo, é meio maricas. É manhosa, um pouco gata: apertada
e afrouxada a toda hora, tem o seu ponto G ou o ponto @ de cuí@.
Precisa ter intimidades com seus dono e, muitas vezes, é ela que é
dona do cuiqueiro. Se o usuário forçar a barra, o couro estouro e aí,
babau...não produz mais sons. Pode também quebrar a vareta ou soltar a
cabecinha. Instrumento sensual, ritualístico, traz o transe corporal
via repetições de sonoridades, combinações de graves, agudos e médios,
em variações que vão de 2-1, 3-1 e 3-3-6 na subida dos sambas.

8- "Em 1928, a "Deixa Falar" (atual Estácio de Sá), primeira escola de
samba do Rio, fez seu desfile já com cuiqueiros na bateria. (...)
Alguns de seus nomes em outros idiomas: rouca, em Portugal; buha, na
Romênia; pouti-pouti, na Itália. No Brasil, também conhecida como
omelê, aqui no Rio; tambor-onça no Maranhão; roncador, no Pará;
adulfo, em Alagoas. (Da matéria "Agoniza mais não morre")

9- "O médico pesquisador Hiram Araújo, 60 anos, chefe do Departamento
de Pesquisa do Museu do Carnaval, conta que o aparecimento da cuíca
pode ser datada no século 1 ou 2 depois de Cristo, quando era
utilizada nas festividades dos povos sarracenos do Egito. O
instrumento, simpático como ele só, conquistou vários países, de Cuba
à Romênia, Holanda, Portugal, Japão, Alemanha... (Informações de
"Agoniza mas não morre", de Adriana Castelo Branco e Cláudio Henrique,
publicada na revista "Domingo", do Jornal do Brasil, em 2 de fevereiro
de 1997.

10- "Meu violino de bambu/ meu tambor de sutilezas/ libertação minha
presa/ meu cristal e meu vodu" (...) "Cuiqueiro é presepeiro/ vai na
frente e mostra os dentes/ ele e sua palhaça/ até os dedos
dormentes"(...) "toco cuíca como quem dá tiro/ atiro, aturo, atalho,
embrulho" (...) "mas cuíca também falha/ em plena Sapucaí/ quebra a
vara, rompe o couro/ te deixa de pau na mão"(...) Por isso: tenho duas
cuícas/ Nikita e Florença/ enquanto Nikita aflora/ Florença quica/ E
assim floreiam o mundo/ desafinadas, as cuícas. (Poema "Minha Cuí@",
do livro "Cadê?", de 1998, Luis Turiba, dedicado a Roberto Salvatore)

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Ou a gente se Raoni
Ou a gente se Sting

Luis Turiba

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