Iemanjá e a Utopia brasileira
Darcy Ribeiro, em depoimento a Antônio Risério e Luis Turiba na revista "Invenção do Brasil", 2000
"A Utopia brasileira é a uma utopia singela: comida, casa, escola e remédio. O resto – o espírito nacional, o orgulho de si mesmo como povo, a criatividade, a alegria – já foi feito. Nós já fizemos o mais difícil. Somos o único povo, de que tenho notícia, que foi capaz de inventar um culto nos últimos trinta anos, um culto igual ao dos gregos, que é o de Iemanjá e a arrastou para uma posição que acabou com Papai Noel, aquele finlandês bestão que anda num carro puxão por veados, com um saco nas costas, jogando presente em chaminé. Quer dizer, acabou com um negócio tão alienado que os caras aqui gostam de se juntar pra comer fruta seca, numa época em que as frutas estão mais vistosas, com caju, mana, bacupari, pitomba, mangaba, as frutas mais prodigiosas da terra.
Minha festa de Iemanjá é isso: uma mesa cheia de frutas. Comer fruta seca é coisa de imbecil.
Sim, o crioléu carioca foi capaz de aposentar Papai Noel e colocar no quadro uma deusa grega. É preciso ser grego, de talento e de tesão, pra inventar Iemanjá, uma deusa que fode. A mãe de Deus faz amor – é uma idéia incrível.
Dos milhões que vão à praia, do dia 31 para o dia primeiro, passar o ano na praia, molhando os pés na água do mar, ninguém vai pedir pra Iemanjá acabar com um câncer ou com AIDS – vai pedir pro marido não bater tanto, vai pedir uma amante mais gostosa, um namorado dos bons.
Isso é de uma beleza incrível. Então, a criatividade nós temos. A criatividade no plano erudito também é formidável. No ano 3000 ainda vão falar de Niemeyer. E isso vai prosseguir, rodando. Tudo isso e muito mais."
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