quinta-feira, 22 de abril de 2010

BRASÍLIA TEM ESPAÇO ATÉ PARA AS NUVENS

Paulo José Cunha

 

        Clarice Lispector espantou-se com o visual que encontrou quando veio a Brasília pela primeira vez. E falou de uma Brasília artificial, por ter sido construída na linha do horizonte. Tão artificial como o homem quando foi criado. E acrescentava: "Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo". Ela previa a chegada do homem de Brasília, um ser especial que habitaria a cidade especial. Clarice amava o que ela chamava de "a paz do nunca", espalhada pela paisagem de Brasília. E o grande silêncio visual que se podia respirar na cidade.

 

        Aos 50 anos, já existe, sim, o homem de Brasília, previsto por Clarice, o homo cerratensis, de que falava o historiador Paulo Bertran. O homo brasiliensis, espécime  nascido e criado nas superquadras, ou morador das satélites que circundam o Plano Piloto, traduz com facilidade os espaços e o cipoal de signos e siglas da cidade, que ainda confundem os mais antigos. Os nativos traduzem Brasília com a mesma facilidade com que um adolescente mexe num computador, para espanto dos que ainda não se conformam com a aposentadoria das máquinas de escrever.

 

        O brasiliense nascido aqui, que brincou debaixo do bloco, que subiu no foguete do Parque Ana Lídia, que atravessou o eixão, que escorregou na grama do Congresso, integrou-se à geometria da cidade planejada. Sente-se deslocado e estrangeiro é quando tem de enfrentar o caos das cidades tradicionais.

 

        Clarice espantou-se com o artificialismo e a exatidão. Já os nativos estranham que alguém não consiga traduzir os signos e as siglas. Para eles, espantoso é não circular com desenvoltura por dentro do vídeo-game gigante, da fazenda iluminada, do autorama em tamanho real, da arquitetura de possibilidades infinitas, com a mesma desenvoltura com que navegam por entre os sites, links, blogs, spams e pop-ups da internet. Cada vez mais, o espanto com a radicalidade estética da cidade vai ficando distante de quem vive aqui.

 

        Sim, já nasceu o homem de Brasília. O alegre filho de uma cidade tão exata e precisa que uma certa Clarice Lispector chegou a dizer um dia que ela tinha espaço calculado até... para as nuvens.

 

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