quinta-feira, 8 de abril de 2010

UMA CONVERSA POÉTICA

 
O poeta Ricardo Silvestrin, gaúcho com mais de cinco livros publicados, e pessoa queridíssima dos brasilienses, me convidou para responde a algumas perguntas e conversar por e-mail sobre o doce e trabalhoso ofício do fazer poético. 
 
Aceitei o convite e começamos a papear por quase dois meses. Perguntas iam, respostas vinham e vice-versa bangalô três vezes.
 
Rendeu esse calhamaço aí que Silvestrin publicou no seu blog POESIA ALH EIA no endereço  http://silvestrin.blogspot.com/2010/03/serie-dialogos-ricardo-silvestrin-e.html
 
Resolvi publicar também. Fica aqui o registro para a história e para os que se interessarem em saber um pouco mais sobre o nosso processo de fazer poesia e construir poemas. Valeu, parceiro, bola pro mato que o jogo é de campeonato. 
 
 
Turiba: Grande proposta, Silvestrin; podemos começar com uma pergunta que ainda não consigo encontrar respostas. Ricardo, sabemos que um poema, quando bem construído, traz em si uma certa sinfonia musical de ritmos e sonoridades com e das palavras. Alguns sonetos de Vinícius, por exemplo o "Soneto da Fidelidade", induz a uma música. A obra dele é repleta desses exemplos, tanto é que Vinícius terminou deixando para trás o poeta clássico que foi para assumir o compositor meio hippie de "A tonga da mironga do cabuletê". Pessoalmente, fiz alguns poemas que descobri tempos depois que eram "letras de música". Cito o "Bico da Torre" e a "Menina do Parque" que Renato Matos, um brasiliense-baiano, musicou depois de muita propriedade. Bem, só estou apenas lançando um tema, provocando um diálogo conforme você propôs. Ou melhor; voltando a um velho tema dicotômico que é "poesia e letra de música". Os poETs, meio poetas, meios compositores-cantores, são um exemplo vivo desta trilha. Somos de uma geração de seres culturais muito mais musicais e visuais do que letrados. Antes das bibliotecas freqüentamos lojas de discos, lembra? Fomos tropicalistas antes mesmo de sermos modernistas. Por intermédio de Chico Buarque fomos conhecer melhor Machado de Assis. Enfim, toquei a bola pra frente. Qtal?
Ricardo: Grande Turiba! Como canta o Asdrúbal trouxe o trombone, "eu preciso de pessoas animadas/e ânimo tem quem conhece e vence o medo". Vamos à questão. Não se trata de nomear por nomear ou separar por separar ou mesmo juntar por juntar poesia e letra de música. Trata-se, e penso que isso seja o mais importante, de se entender que tipo de criação e elementos criativos estão presentes num texto e noutro. E esse um e outro pode até ser o mesmo texto. Voltando ao passado. Lá na Poética do velho Aristóleles, 300 a.C, ele diz o seguinte. O verso veio antes da frase. Ele é uma imitação dos conjuntos da fala. A gente fala aos pedaços. Fala um pouco, para, segue. Não se fala como a frase, do início ao fim da linha sem parar. Isso só narrador de futebol faz. Então, o verso nasceu como um critério sonoro, de fala. Um tratado de medicina era escrito em versos. Esse verso artístico, não o do tratado, era apresentado junto com outros elementos. Daí os metros. Se o verso fazia parte de uma peça com dança, era recomendável x número de sílabas. Se era falado, outro, se era entoado, outro, se era cantado, outro. A métrica nasceu como um critério funcional, não apenas uma escolha estética. A fala por si só tem uma melodia. Os sotaques são uma prova disso. Quando encontramos alguém de outro estado dizemos que ele fala cantado. E ele diz o mesmo de nós. O que houve? Como todos da mesma comunidade estão cantando a mesma música, a gente não repara. Quando ouve uma música diferente, o ouvido registra. Essa melodia não-intencional da fala é diferente da melodia intencional que se cria numa música em que se coloca uma letra. Na segunda, criamos uma melodia para ser cantada, mais cantada, do que a fala. Por outro lado, se tudo é canto, um intencional e outro não, também se pode dizer que tudo é fala. Como diz o Tatit, cantar é disfarçar que se está falando. O samba de breque, por exemplo, para e fala, como que para nos lembrar disso. Depois dos gregos, os romanos herdaram os metros e seguiram falando-cantando. Na idade média, os trovadores criaram melodias com letras e cantaram. A arte do verso era consumida pelo ouvido. Com a invenção da imprensa, da possibilidade de reproduzir o texto no papel, essa arte do ouvido passa a ser também dos olhos. Isso muda tanto a recepção quanto a criação do verso. Os poetas foram descobrindo, vendo no papel, que fica legal cortar o verso num ponto de leitura, critério visual, e não mais ou apenas num ponto métrico, critério sonoro. E outras descobertas que chegam até os poemas visuais e concretos. Foram cerca de 450 anos descobrindo isso. Hoje, temos no poema escrito para ser lido a convivência de valores sonoros e visuais. Paralelo a isso, há uma outra ramificação dessa arte do verso, a que lida com verso e construção de melodia para ser cantada. Isso vem junto, desde o início, acentuou-se com os trovadores medievais e vem até hoje. Nessa criação entre a palavra (letra) e a melodia, além dos outros elementos como ritmo, acordes, harmonia, pulso, ataque, interpretação, arranjo, gravação, execução (música), nasce um objeto estético híbrido, feito de palavras (que também são sons) e sons que não são palavras. Por exemplo, quando Tom Jobim canta "Angela, porque tão triste assim agora/e tudo quanto existe chora/teu rosto na janela (agora a melodia começa a subir junto com a letra, vai subindo na escala dos agudos)
da-que-le-a-vi-ão (subiu a melodia junto com o avião) - e segue arrasando com palavra e melodia: "lá embaixo a terra é um mapa/que agora uma nuvem tapa/não tentes evitar a dor...". Então, isso é uma arte em que a palavra convive criativamente com os elementos outros musicais. Daí, chamar-se, não por um lapso da cultura, de letra de música. É mais uma parte dessa estrutura que é a música: harmonia, melodia, letra. Mas são versos. E, como tal, lidam com surpresas de significados das palavras, com aproximações e achados sonoros das palavras, com imagens, metáforas e pensamentos construídos com palavras. Sobram ainda duas nuances dessa questão. Uma é a questão da nomeação. Ela diz respeito, por um lado, a uma raiz histórica, e por outro, ao status, também histórico, tanto da poesia quanto da letra de música. Lá no véio Ari, o Aristóteles, na Arte Poética, está a raiz histórica. Como tudo era escrito em versos, tudo era poesia. A poesia épica, a que narra a história de um herói, que hoje vive na prosa, era escrita em versos, era poesia. A poesia dramática, também em versos, que virou o teatro. E a poesia lírica, que nasce quando um dos elementos coro da tragédia vai ganhando cada vez mais fala e acaba saindo do coro e indo falar sozinha. Esse desprendimento também coincide com uma nova fase do pensamento grego. É quando o homem fala sobre o mundo a partir de si e não mais a partir do confronto com os deuses. O poeta lírico, ele e sua lira, entoa versos sobre uma base de acordes. Na raiz, tudo é poesia. Com o tempo, os trovadores, a melodia mais construída para ser cantada, essa poesia vai virando letra, parte, da música. E a poesia, com o advento da imprensa, passa a ser criada para ser lida, parte do papel, do livro. E mesmo a poesia falada terá melodia de fala, não virando letra de uma melodia. Daí, terem vingado e permanecido dois nomes para duas realizações da arte do verso: poesia (poema, a forma dessa arte) e letra de música. Como diz o Greimas, liguista da semântica estrutural, não existem sinônimos. Há palavras com traços de significado em comum, mas nenhuma palavra tem todos os traços que outra. Por isso, em alguns contextos, uma pode ser usada pela outra, mas em outros contextos não. Assim, pelo princípio da economia da linguagem, quando uma palavra passa a ter os mesmo traços de significado que outra, uma cai em desuso. É o que está para acontecer creio com poesia e poema. Dirão: poesia é o lírico, o inefável, e poema, a forma. Mas se alguém disser que escreveu uma poesia ou que escreveu um poema ninguém hoje vai perguntar "mas te referes à forma ou ao conteúdo poético?". Já letra e música seguem se diferenciando e causando, inclusive esse debate. No poema escrito, há ainda os valores visuais da palavra que o distanciam ainda mais da letra de música. O valor histórico de cada uma dessas duas realizações é a outra nuance. Como a poesia é uma arte mais antiga, nomeadamente mais antiga, como ela entrou para o mundo letrado, o mundo que usou ideologicamente a literatura para afirmar um passado histórico glorioso das nações, parece um depreciação não chamar letra de música de poesia. Não chamar um grande letrista ou compositor de poeta. Mas poesia não é elogio. É uma forma. Há péssimos poemas e péssimos poetas também. Chamar Chico Buarque de poeta, dependendo com que poeta o está comparando, pode ser um mau negócio para o Chico. Há grandes letristas, grandes criadores de letra e música (compositores) que são tão geniais como os mais geniais poetas de poesia escrita para ser falada ou lida. E há letristas fracos como há poetas de livro fracos. Uma arte não está acima da outra. Por outro lado, a não audição da relação criativa entre letra e música faz valorizar mais os letristas que escrevem letras mais parecidas com poemas escritos. Aparece o argumento que tal texto pode ser lido sem a música. Ok, pode. Mas se for ouvido com a música vai se perceber muito mais coisas dessa relação criativa. Chico Buarque não é apenas um grande letrista, mas um grande compositor. Um música como Pelas Tabelas, por exemplo, tem na melodia o movimento do cordão carnavalesco que vai pela rua, avança até o ponto máximo e depois recua lá para o começo. A letra narra as ilusões de avanço democrático quando da época das diretas já. "Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/eu achei que era puxando um cor (dão) oito horas e danço de blusa amarela/claro que ninguém se toca com minha aflição...". No ponto do "dão", sílbaba que vale para os dois versos, a melodia volta para lá para o íncio da frase. Isso segue até o fim da música. Chamar o Chico de poeta, pensando apenas na qualidade do seu texto escrito, é, nesse caso, uma diminuição, não um elogio. Ele não criou só o "poema", mas a letra em relação à melodia da música (que é outra em relação à melodia do texto), ao ritmo da música (que é outro além do ritmo do texto), à sequência de acordes. Existem, pra terminar, o caso do poema musicado e o caso de criar uma letra para ser musicada. O poema, como disseste, tem uma melodia, um ritmo. Isso foi construído pelo poeta. É uma melodia de fala, ou de poema mesmo. Mas é melodia para ser lida, não cantada. E ritmo para ser lido, não batucado ou dançado. Embora se possa batucar e até dançar se for repetido o texto, achando-se seu ritmo e sua melodia. Quem vai musicar pode perceber pela leitura uma melodia e um ritmo, que nasce do poema, que pode coincidir com a que poeta criou e a estrutura está realizando ou mesmo vir da própria maneira de ler. A partir daí, o músico vai criar uma melodia de canto, que pode também não ter diretamente nada a ver com a do texto. Em alguns casos, vai repetir versos formando um refrão, inserir pausas, cortes. Ou seja, vai transformar, quando cantado, o poema em letra, em parte da música. Os versos vão dançar conforme a música. Então, esse texto, passa a ter dupla cidadania: é poema no livro, no papel ou mesmo falado, e é letra quando cantado. Como já sabemos que poesia não é elogio, não perdeu nada. Só ganhou, se for bem musicado, se o músico não transformou o poema bom numa música sem graça, o que é bem comum de acontecer, pois o músico não conseguiu deixar aquele poema uma boa letras, não cortou, não repetiu ou não criou uma boa melodia, legal de cantar. Quando criou uma letra, sem melodia, já deixo a cama pronta: faço versos regulares, uso repetições, crio até refrão, e vai do estilo do músico fazer uma melodia legal ou uma chatice. E também crio melodias cantando e coloco letras, criou uma sequência de acordes, melodia e letra, ou crio junto com os poETs ou com outros parceiros melodia e letra e colaboro na sequência harmônica. Tem os casos de diálogo entre poesia e letra, mesmo musicando poemas visuais. "O que não é/não pode ser", poema circular do Arnaldo Antunes, essa frase/verso que é uma afirmação circular - se não é não pode ser; e se não pode ser não é, foi musicada pelos Titãs. Onde começa um círculo? Em qualquer ponto? Então, eles vão lendo o círculo na melodia, cantam a frase começando cada vez de um ponto: não é o que não pode ser que não é/ é o que não/pode ser que não/é! - e seguem com uma melodia circular: o que não é o que não pode ser/ o que não é o que não pode ser/ o que não é o que não pode ser que não é. Também Caetano musica os valores visuais do Pulsar do Augusto de Campos, dando sons mais graves ou mais agudo conforme os desenhos-letras-estrelas são maiores ou menores. Bom, Turiba, essa pergunta quase transformou o diálogo em monólogo. Agora é minha vez de perguntar. Quero saber da tua relação com o samba, primeiro, e com a visualidade da palavra, em segundo. Diz aí!
Turiba: Querido amigo Ricardo Silvestrin, adorei aquela história do "texto com dupla cidadania" e muitos mercis pela quase aula (sem quer chamá-lo de acadêmico) sobre esse tema que já mereceu até filme de Tete Moaes, com participação de Chico, Arnaldo, Tatit, Martinho da Vila e um carrada de gente boa. Sarava amigo, com licença de Vinícius de Moraes que nos deu aulas de poesia e letras de música. Esse praticou a "dupla cidadania" intertextual! Agô também pelo retardo na minha resposta. É que estava com a cabeça como naquele samba do Chico "Pelas Tabelas" que você citou. Mas agora, depois de férias em Salvador, muita praia, coco e acarajés, axés e ijexás, o cansaço foi substituído pela boa preguiça, que é melhor que o stress. Assim, estou em plena recuperação de meus plenos poderes mentais. Mas vamos lá: você, no seu último e filosófico papo, me propõe para falar alguma coisa sobre o samba. Aí é comigo mesmo. No ano passado, por exemplo, compus e gravei um samba em parceria com o Dr. Da Cuíca e Paulo Djorge com o título "O samba já nasceu na minha veia." Lindo por sinal. Penso em encartar um CD com 10 sambas no meu próximo livro de poesia, o "meiaoito" que já está no prelo. O fato, porém, é que o samba rola mesmo nas minhas artérias e serve como um veneno anti-monotonia. Isso desde a juventude de meus 15 anos, pois fui criado na Rua São Francisco Xavier, bem em frente ao viaduto que dá acesso ao morro da Mangueira. Assim, a Mangueira, o Buraco-Quente, suas vielas, seus barracões de zinco, fazem parte da minha primeira infância e da minha adolescência. Recentemente comecei a ter a consciência plena e ampla sobre o papel do samba na formação na nação e da cultura brasileira, do seu caráter popular, suas peculiaridades rítmicas, suas responsabilidades sociais, comunitárias e poéticas. No Brasil, o samba é o alegramento da tristeza. O "Samba na Veia" fala um pouco sobre isso. Eis a sua letra:
Samba na veia
Dr. da Cuíca, Paulo Djorge e Luis Turiba

o samba já nasceu na minha veia
o samba já nasceu na minha veia (refrão)

quando digo que o samba é o lance
a mais bela síntese do eterno instante

quando digo que o samba é o brinco
o brilho perdido achado e surtido

quando surto no samba o meu surdo
marcante e arfante amado e temido

é que o samba mistura-se ao sangue
e ferve o instinto na beira do abismo

o samba já nasceu na minha veia
o samba já nasceu na minha veia (refrão)

o samba é a herança de um berço
lembranças marcantes mistura de raças

o samba é meu pranto rolado

pra ser exaltado no meio da praça

simbora no semba e no samba
no jongo na benção da mãe africana

quem nasce no samba tem arte
alma de passista e de porta-estandarte

(quando eu nasci
um anjo torto me deu um tamborim
um pandeiro e uma cuíca
e um pedaço de cetim)

Voltando ao nosso papo. O samba para mim funciona como um elixir de ânimo, um do-in rítmico e acima de tudo poético. Quando editava a revista de poesia experimental Bric-a-Brac, nos anos 80 do século passado, fiz uma entrevista com Paulinho da Viola que repercute até hoje. Foram 10 horas de gravações por dois dias seguidos. Paulinho se soltou. Recordou e contou histórias fantásticas do seu reduto de samba, o bairro de Botafogo, no Rio, e a escola de samba Portela, de Madureira, antes de ser dominada por bicheiros. Foi uma das conversas mais lindas e gloriosos que consegui editar. Será agora republicado no livro de arte que a Cosac Naify editará sobre a vida do autor de "Foi um rio que passou em minha vida" e "Sei lá Mangueira". Paulinho lembrou de nomes que formaram a Velha Guarda da Portela, uma das células mais vivas e ricas do samba carioca; inúmeros episódios envolvendo este mundo encantado e o melhor, cantou antigos sambas. Um desses sambas compostos por Jamelão e Bubu, "Quando vem rompendo o dia" foi logo depois da entrevista regravado por Marisa Montes com muito sucesso. Marisa, aliás, parece ter se inspirado na entrevista de Paulinho para roterizar um mergulho na Velha Guarda da Portela junto com o príncipe do samba. Deste mergulho nasceu o filme "O Mistério do Samba", uma obra-prima que existe em vídeo e merece ser visto, comentado e devorado por quem deseja conhecer melhor a cultura brasileira e carioca. Mas voltando a entrevista com a Paulinho, cujo título era "Um samba dominando o mundo", na Bric-a-Brac nº 4, de 1988; pude descobrir que o samba, assim como a capoeira, se enraizou pelo mundo afora. Ou seja; fez o seguinte circuito histórico: subiu o morro com a nascimento das favelas no início do século dezenove; desceu do morro para a classe média, com a evento da bossa-nova; e se espalhou além fronteiros do Rio consolidando-se nas comunidades afro de São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Maranhão; e assim fez sua diáspora mundo afora. Fiz na Internet uma pesquisa que me levou ao surpreendente resultado: o samba brasileiro está se reinventando no Japão, lá do outro lado do mundo. São cerca de 20 escolas de samba em Tóquio, Azakusa e diante disso, estou agora levando adiante um projeto intitulado "Samba no Mundo". Para finalizar nosso papo sobre samba, passo pra você Ricardo a letra de um samba-enredo que fiz em parceria com o poeta português Fernando Pessoa. Uma cópia deste samba foi levado para a Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, pela professora responsável pelos baús pessoanos. É assim:

Fernando Pessoa e o outro do outro
Luis Turiba com base em poemas de Pessoa

Deus quer
O homem sonha
A obra nasce
Deus quis

Que a terra fosse toda uma
Se a vida quase sempre imita a arte
Me coube um destino testemunha

Vou contar pra vocês
Algo que me invade
Quando tento apreender
Se revela nenhuma

(BIS)

O outro do outro no oco do eco do torto
Que carrego junto a mim
Um porto é um pacto é um parto é um fardo é um fado
Coberto de lama e de cetim

O sol hoje saiu e mandou avisar
Gente é pra brilhar fome pra quê?
Passei a minha infância no Além Mar
Bordando incertezas ao meu viver

Fernando Pessoa e a sua Mensagem
Tornou a lusa língua navegável
Fingir-se é conhecer-se é ser o outro
Um mar de vozes em um simples corpo

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é samba
O fado que está nas gentes (bis)

Deus quer (bis

E aí vai minha pergunta, que é algo que sempre o público leitor deseja saber. Como funciona o seu esquema de criação? Como você recebe a inspiração e atraca com a transpiração? E voltando ao nosso papo inicial: há versos que nascem para ser música e como trabalham os poETs suas parcerias?

 

Ricardo: Eu trabalho de duas formas. Uma é com projetos. A outra é sem projetos. Na segunda, são os poemas que vou escrevendo ao longo da vida. Escrevo-os tanto do nada, porque fiquei a fim de escrever, quanto por estar lendo poetas legais que me dão vontade de escrever também. E esse do nada, na maioria das vezes, é do nada mesmo. Sento para escrever porque estou com vontade, mas não tenho a priori nenhuma ideia nem de forma nem de conteúdo. Escrevo de desejo mesmo de escrever. Aí sento e vou vendo o que sai. E sai. Quando a gente vai ver, estavam coisas lá no fundo da água escura que se puxa e se olha pra elas. Quando sentei porque alguma leitura de poesia me deu o click, saem poemas, um ou mais, nascidos desse click, desse viés criativo que achei nas entrelinhas e entreformas de outros. E posso seguir escrevendo outros poemas que nada tinham daquilo que me motivou a começar. Já nos poemas que nascem de projetos criativos, a coisa se dá por descobertas. São descobertas criativas que podem render uma série ou até um livro inteiro. Em O Menos Vendido, há três partes. A primeira se chama Manchas. Nela, tem poemas isolados e séries. E todos são poemas de envergadura estética. A segunda parte se chama Quieto no meu canto. São poemas em voz baixa. Mostro ali, de uma certa forma, o oposto da divisão anterior. São poemas feitos com muito pouco, mas que para em pé por isso mesmo. E a terceira parte se chama A poesia de cada dia. Esses surgiram da leitura de uma leitura do prefácio do livro do Walt Whitman, escrito pelo Leminski. Ele diz que Whitman escreveu poesia a vida inteira. Pensei na hora, como seria se levássemos essa frase ao pé da letra. Se escrevesse poesia todos os dias. Então comece essa série, escrevendo um poema por dia até quando agüentasse. Foram 88 dias. E tantos outros projetos, como no meu livro ex,Peri,mental, por exemplo, os poemas de único verso cada, ou os poemas do infantil É tudo invenção, em que crio versões de como determinadas coisas foram inventadas. Sobre a criação nos poETs, fazemos, juntos e nesta ordem: a sequência harmônica, a melodia e, por fim, a letra. Fazemos tudo os três. É uma criação coletiva de música e letra. Portanto, os versos de música nascem quando estamos criando uma música. Tens aquele poema muito legal que diz "Sambo para dentro". Como nasceu? É uma espécie de poética tua?
Turiba: O nome desse poema é "Ábsono", uma palavra que pesquisei e escolhi no dicionário. Aliás, tenho esse mania: escrever sempre com um dicionário por perto. Eu queria escolher uma palavra como título para definir aquele negão de quase 2 metros que frequenta sambas em Brasília e tem uma maneira muito peculiar de samba. Samba absolutamente parado, ao contrário do sambista normal que é expansivo, samba pulando pra frente, pra trás e pros lados. A ginga do samba é um pouco a ginga da capoeira, coisa de negros, coisa da África. É uma espécie de linguagem do corpo que é própria dos africanos, que falam dançando, sacudindo expansivamente pés, mãos, cabeças, braços, bundas, enfim; o corpo acompanha a batucada. Os sons dos tambores, os desafios das florestas, das savanas. Já viu um mestre-sala cortejando a porta-bandeira. Você que foi a Mangueira e olhou carinhosamene o velho Jamelão ao ponto de fazer um poema-samba sobre o velho cantor, já viu o Delegado dançar, com seus 83 anos, ainda hoje é um mestre na arte de "falar no pé" que também é um tipo de linguagem. Então o "Ábsono" foi um poema de observações, sem nenhuma inspiração, um poema de pesquisa, tipo esse que você fez em cima do prefácio do Leminski para Witmann. Um poema-radiografia, quase anatomia, descrevendo partes do corpo humano. Mas funciona bem dizê-lo, pois faço um gestual do meu "muso" inspirador. Tempos depois, descobri que meu personagem tem uma pomba-gira muito forte, dessa que o Zeca Pagodinha chama de Bramará, pois bebe um engradado sem usar o toalette. Então, o samba vai esquentando e o cabra bebendo cerva e começa a rebolar pra dentro, como se estivesse se espiritualizando, recebendo um santo. Dá umas sacudidas e, de repente, pára. Também é linguagem corporal. "Ábsono" é um estado quase inerte, um estado quase ioga, hipnotizado e hipnotizante. Então, dessas contradições todas nasceu um belo poema que pra dizê-lo tenho que ter um preparação interior para ficar mais a vontade. Pretendo abrir meu CD de sambas recitando esse verso tendo ao fundo duas ou mais cuícas. E você, me parece que sua praia é mais a do rock and roll, do iê-iê-iê? Arnaldo Antunes, por exemplo, rodou, rodou, rodou e parou no iê-iê-iê. Como foi sua formação musical? O que gera essas canções tão instigantes dos poETs. Você ouvia mais Lupícínio Rodrigues ou mais aquela dupla de cantores gaúchos que dizia: "Deu pra ti/ baixo astral/ vou pra Porto Alegre e tchau"? Roda sua música aí, vai.....
Ricardo: O teu livro Bala é dedicado a tua querida esposa Vânia, que é professora de ioga. Então, achar um iogue sambista é coisa para especialista! O samba é uma das minhas paixões. Está lá na raiz da minha alma. Sou brasileiro que gosta do seu país, da sua história, da sua produção cultural. Isso vale para o nosso cinema, a nossa poesia, artes plásticas, música, teatro. As primeiras músicas que compus, sozinho, com letra e melodia, ali pelos nove anos, eram marchinhas, sambinhas. Desde criança, acompanho o carnaval. Fui a desfiles na avenida, brinquei em clubes e sempre espio na TV. Aquela virada histórica do luxo para o lixo do Joãozinho Trinta é grande arte brasileira. E o que essa comissão de frente da Unidos da Tijuca com as pessoas mudando de roupa em segundos? Se alguém precisar de um letrista para samba-enredo, sou parceiro! No meu primeiro livro, Viagem dos olhos, tem uma série de quatro poemas chamada Argumento. Todos sobre o samba na avenida. Vejo seguido no Canal Brasil aqueles filmes com Zé Trindade, Oscarito, Grande Otelo em que os cantores dos sucessos de carnaval dão uma palhinha. O poema sobre o Jamelão não é um desvio na minha história. Pelo contrário, é o resultado de tudo isso. Mas minha formação musical é mais ampla. Na primeira adolescência, a soul music, a discoteque. Na segunda fase, ali pelos 13, rock pesado: Deep Purple, Kiss, Queen, Black Sabath, Slade, Pink Floyd. Dos 16 em diante, MPB, Caetano, Gil, Chico, Alceu Valença, Moraes Moreira, Sá, Rodrix e Guarabira, Gal Costa, além dos gaúchos Musical Saracura, Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro, Almôndegas (a banda de rock rural de onde saíram os irmãos Kleiton e Kledir). Já pelos 19, Itamar Assumpção, Arrigo, Premeditando o Breque, Rumo Tetê. Pelo 20 e poucos, o rock brasileiro do Barão, Lulu, Paralamas, Titãs, Kid Abelha, além dos gaúchos Júlio Reny, Graforréria Xilarmônica, Cascaveletes, TNT. E perto dos 30, Beatles e jazz – Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Louis Armstrong, Cole Porter, Gerswin. Hoje, tudo ao mesmo tempo agora. Na nossa composição dos poETs, o título do primeiro cd, Música Legal com Letra Bacana, define bem a nossa proposta. Nós três temos cada um o seu caldeirão musical. Há cruzamentos e individualidades, mas o três têm um pé no rock, o Ronald com Jimmy Hendrix, o Alexandre com Yes, Jethro Tull, eu com Deep Purple, Stones, Pete Townshed, Talking Heads. Os três com Beatles. Sempre ouvi os garotos de Liverpool, mas a ficha total caiu mesmo pelos 30 anos. O Ronald foi se apaixonar há poucos anos pelos Beatles, depois do convívio comigo e com um guitarrista que tocava com ele. O Alexandre tem já de berço e também com sua voz melódica e bonita o desenho de Beatles nas suas composições. E ele também gosta de um free jazz, Pat Methiny e essa turma. A brasilidade também em nós três é forte. Tem muita mais coisa, Bob Dylan, Neil Young, Lupicínio, tango... Saindo dos ouvidos para os olhos, teu trabalho tem sempre um forte apelo visual. No Bala, por exemplo, há uma diagramação de títulos e fontes próxima de uma revista. E ainda fotos, poemas sobre obras de arte. Isso se soma ao teu importante trabalho como editor da Bric-à-Brac, que tem muita direção de arte se unindo à palavra. Como é essa tua relação com as artes gráficas e plásticas?
Turiba: Realmente essa nossa conversa está muito ouvidos e poucos olhos. Uma das paixões da nossa geração é a visualidade poética, sem nenhuma dúvida. Costumo dizer que a Poesia Visual nos pertence, está no nosso DNA poético, vem da publicidade, da televisão, do cinema e tudo isso se consolidou recentemente com o computador como mídia poética. O designer da linguagem está na raiz do nosso tempo, pisca diante dos nossos olhos. Somos ao mesmo tempo filhos e pais da visualidade na escrita e na comunicação. Somos totalmente verbovocovisuais como designou a Poesia Concreta e assim podemos seguir a máxima do Manifesto Antropofágico de Oswald: roteiros, roteiros, roteiros. Nossa geração, aquela que entra em cena no final dos mágicos anos 60 e segue de teimosa pelos anos 70 e 80, recebeu a tradição da visualidade poética dos modernistas, dos surrealistas, dos cubistas e dos concretistas. Nossa vocação para a visualidade foi maior do que a nossa formação literária livresca. Somos visuais e também musicais, pois de certa forma, acompanhando a tradição inventada pela Poesia Concreta de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, antecipamos as mídias cibernéticas desde o século passado. Somos frutos do cinema, da televisão e das manchetes do jornais. Das artes plásticas e das mensagens imediáticas da digitalidade. Fizemos o ciclo da Poesia Concreta ao Grafite. Da Letra Set ao Machintoch. Do soneto ao twiter. Foi dentro deste entendimento que desenvolvemos a revista experimental Bric-a-Brac cujo lema era: "Da Idade Média à Idade Mídia". Meus livros "Cadê?" e "Bala" trazem na sua diagramação esta tradição de visualidade. Por prazer e por gosto. Aprendemos que poesia visual não é uma desalmada. Ela também tem alma, menstrua, chora, faz birra e fica manhosa como a Poesia Papel. Estou publicando agora o livro infantil "Luísa Lulusa, a Atriz Principal" que é totalmente visual-infantil. Desenhos, rabiscos, cores, luzes. Ou como escreveu o mestre pantaneiro Manoel de Barros: "há muito de lagartixa na palavra parede". Ao que Paulo Leminski concordou: "como grego/ ouço música negra/ me desagrego". Agora, caro Ricardo, fala um pouco você também de suas paixões pelas visualidades das palavras, dos versos, dos sentidos da linguagem.
Ricardo: Ando colocando uma lente mais ampla do que colocava sobre o século XX e suas conquistas. A questão da visualidade se dá muito antes. Com a invenção da imprensa, aquilo que era produzido para ser consumido pelos ouvidos, a poesia, passa a ser consumido também pelos olhos. Isso muda, num primeiro momento, a recepção e, num segundo momento, a criação. O cara vinha contando sílabas, critério sonoro, e descobre, na página, uma possibilidade de quebra do verso no espaço, na página. Desde então, as descobertas poéticas se dão pela manutenção e inovação sonora somada a criações no espaço. A palavra no papel, a letra, a sílaba, tudo isso se mostra também como desenho, como grafia. A palavra é ao mesmo tempo significado, som e desenho. O século XX é o momento de ampliação criativa desse problema iniciado lá atrás. Na minha produção, sempre lidei com as três dimensões da palavra. No aspecto visual, lido mais com a quebra do verso, com a surpresa de significado pontuada pelo corte espacial. No meu livro ex,Peri,mental, que editei pela ameopoema, tem o poema descurso em que vou de uma letra por página, passo a uma sílaba por página, depois uma palavra por página e por fim tudo emendado, sem espaços entre as palavras. Falo sobre letras, sílaba, palavra e, por fim, o descurso, esse discurso que perde o curso. Também tenho um poema no meu livro novo, inédito, em que crio com a forma visual de algumas letras. E amo a poesia de Augusto de Campos, de Décio, de Haroldo; curto o Gullar e suas letras quebrando a página, o Ronald Augusto tem coisas interessantes também. O Arnaldo Antunes, Joan Brossa, Braga... Não separo o todo da palavra: significado, som e desenho. Dessas três metades, há muito o que se tirar para quem tiver engenho e arte. Agora, pra gente encerrar, já lá se vão oito páginas, gostaria que falasses sobre o teu amor pelas girafas.
Turiba: Girafa é uma paixão africana. Nada mais África do que uma giráfrica. No andar, no molejo, no trejeito e até no ato de alimentar-se, esticando aqueles pescoços quilométricos para buscar no topo das árvores das savanas o fruto e o alimento do dia-a-dia. Passei 15 dias em Durban, na África do Sul, em 2004. Fui acompanhado uma delegação da Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, a uma conferência internacional da ONU sobre preconceito racial. Foi simplesmente o máximo essa viagem de trabalho. Uma das mais ricas em essências que já fiz. Não negro, mas também não sou branco. Sou pardo, quase mulato, filho de uma índia com um português. Mas trabalhei muito pela constituição da Fundação Palmares, ainda no tempo que José Aparecido era, o primeiro, ministro da Cultura. Me sentia muito à vontade na delegação brasileira de ilustres negros e negras. Mãe Stela de Oxossi, Carlos Moura, Milton Gonçalves enfim; toda uma geração de militantes novos afrobrasileiros, como eles mesmos se definiam.
A conferência foi em Durban, cidade localizada a hora e meia de vôo de Joannesburg, no Oceano Índico, quase em frente e bem próxima à Ilha da Mandasgascar. Passamos uns 15 dias lá, bebendo os melhores vinhos sulafricanos e vivendo todo um movimento antipreconceito com gente de tudo quanto é parte do mundo.
Descobri duas coisas incríveis nesses dias. Primeira: foi em Durban que viveu sua primeira infância o poeta português Fernando Pessoa. Fui fotografado até ao lado de um monumento ao poeta onde pode-se ler: "Oh salty sea/ how much of your salt/ are tears of Portugal". Pessoa só voltou para Lisboa aos 14 anos e já havia escrito poemas e mais poemas
em inglês.
Também em Durban viveu o indiano Maratma Gandhi. Metade da população de Durban é indiana.
Então escrevi: "Voltei d´África impregnado de Mandela/ Cores pulsam tribos, tambor ressoa/ Ao som do vinho tinto, assim me sinto/ Um filho de Gandhi a visitar Pessoa."
No último dia de Durban, resolvemos fazer um safári numa tribo Zulu, distante três horas. Foi lá que via uma girafa solta na savana, andando como uma top model elegantemente. No Brasil, jamais poderemos ter essa idéia pois as girafas vivem presas nas baias dos zoológicos, um horror.
Um girafa liberta transforma-se num ser especial, gostosíssima. Foi daí que escrevi o poemaclip "Na Gira das Girafas", uma quase música que os poETs bem podiam gravar. Diz assim:
"Como são gostosas as girafas
olham as estrelas de frente
conversam nos olhos de Deus
penteiam em plenas nuvens
os cílios de Carmem Miranda
& aquelas antenas a ligá-las
aos desfiles das savanas
são gêmeas das senegalesas
na altura na graça & beleza

as pernas mais altas da África
são retilíneas falsas magras
as curvas cheias de carne
quadris de Noami Campbell
o andar de Gisele Bündchen
são afro-pop as top models
sacodem as bundas a valer
tão nuas em seus pijamas
de listras lindas leopardas

ouvir dizer que elas dormem
dez minutos a cada hora
também pudera, natureza sábia
com aquele pescoço quilométrico
(que um dia hei de beijá-lo)
um cochilo faz descansá-lo
assim sendo ofereço-lhes
um espaço de pouca mata

não tão afro como a África
mas confortável & afável
numa posição de vanguarda
aceitem, pois, minha pauta
um convite um cheque-mata:
venham cumpridas girafas
(se isso não as desagradam)
dormir em minhas gravatas
o sono de quem lida em altas
nada custa...é puro charme

 

Um comentário:

Anônimo disse...

muito grande pra ler...