segunda-feira, 20 de abril de 2009

LÚCIO COSTA E O PAPEL DA ARTE EM BRASÍLIA

Luis Turiba

Discuti, discordai à vontade. Sois críticos, a insatisfação é o vosso clima. Mas de uma coisa estou certo - e vossa presença aqui é testemunho disto - com Brasília se comprova o que vem ocorrendo em vários setores das nossas atividades: já não exportamos apenas café, açúcar, cacau - damos também um pouco de comer à cultura universal.”

Acabo de receber da arquiteta Maria Elisa Costa, ex-presidente do IPHAN, filha do urbanista Lúcio Costa e guardiã de sua obra e do seu acervo, um texto escrito pelo criador do Plano Piloto de Brasília para o Congresso Internacional de Críticos de Arte que aqui se realizou em 1959.
Eis o bilhete de Maria Elisa para o blogdoturiba:

“Turiba, o Dr. Lucio, lá de cima, me pediu que mandasse pra você o texto que segue, (e que deveria ser cantado aos quatro ventos!) escrito há exatos 50 anos, quando JK levou para Brasília em construção uma porção de intelectuais vindos de toda parte para um Congresso Internacional de Críticos de Arte.”

Saudação aos críticos de arte
1959

A cidade nova e a síntese ou a integração das artes, eis o belo tema que vos congrega aqui. Partindo de considerações de outra ordem, visando dar ao país a base industrial e os meios de comunicação indispensáveis à criação da riqueza e à autonomia econômica, plano geral de metas no qual se veio engastar como a chave de uma abóbada a transferência da capital - eis que nos encontramos a mil quilômetros do mar, neste planalto onde há pouco mais de dois anos ainda era o deserto, o ermo e a solidão. Encontro simbólico e de alta significação porquanto demonstra que o futuro tecnológico, econômico e social desta nação não se fará à revelia do coração e da inteligência, como tantas vezes ocorreu no passado e ainda sucede no presente, mas sob o signo da arte, pois foi assim que Brasília nasceu.

Já se disse que isso que vedes, esse mourejar, essa dedicação, esse esforço - esta criação tirada do vazio num gesto de mágica -, é obra de loucos. Se isto é loucura, bendita seja. Lidais com arte, sabereis me compreender. Rejeitamos o baldão, como rejeitamos conscientemente a farsa da "austeridade", pois há momentos na ascensão econômica dos povos subdesenvolvidos - como este que o Brasil atravessa - quando é preciso aceitar novamente o desafio das circunstâncias conferindo sentido atual ao brado histórico de 1822, - "industrialização ou morte!" Industrializar-se ainda que o preço seja a inflação, ainda que se imponha emitir, a fim de vencer a encosta e alcançar a almejada estabilidade noutro plano, com maior produção, mais riqueza, maior poder de compra. A alternativa seria a pobreza sem esperança e a estagnação. Enganam-se os que atribuem o desenvolvimento dos Estados Unidos no século passado, por exemplo, à austeridade do seu governo. O desenvolvimento se processou, pelo contrário, como luta-livre, à revelia dele, que atuou apenas como guardião das liberdades fundamentais. Foi o catch as catch can da aventura, da audácia, da concorrência desenfreada e da especulação na primeira fase do capitalismo, foi esse vale tudo que criou - apesar do governo, a riqueza e o poderio da grande nação.

Tudo tem a sua lógica e o seu devido tempo. Propiciamos ao futuro governo os meios de beneficiar-se do nosso esforço comum, e de proceder à estabilização econômico-financeira, já então em bases seguras, capazes de garantir mais alto padrão de vida para o povo. E ainda lhe daremos, de quebra, uma capital. Esta capital, - Brasília.

Várias coisas me agradam nesta cidade que, em dois anos apenas, se impôs no coração do Brasil: a singeleza da concepção e o seu caráter diferente, a um tempo rodoviário e urbano, a sua escala, digna do país e da nossa ambição, e o modo como essa escala monumental se entrosa na escala humana das quadras residenciais sem quebra da unidade do conjunto, e me comove particularmente o partido adotado de localizar a sede dos três poderes fundamentais não no centro do núcleo urbano mas na sua extremidade, sobre um terrapleno triangular como palma de mão que se abrisse além do braço estendido da esplanada onde se alinham os ministérios, porque assim sobrelevados e tratados com dignidade e apuro arquitetÃ?nicos, em contraste com a natureza agreste circunvizinha, eles se oferecem simbolicamente ao povo: votai que o poder é vosso. A dignidade de intenção que lhe presidiu o traçado, e tão fundo tocou a André Malraux, é palpável, e stá ao alcance de todos. A Praça dos Três Poderes é o Versalhes do povo.

Discuti, discordai à vontade. Sois críticos, a insatisfação é o vosso clima. Mas de uma coisa estou certo - e vossa presença aqui é testemunho disto - com Brasília se comprova o que vem ocorrendo em vários setores das nossas atividades: já não exportamos apenas café, açúcar, cacau - damos também um pouco de comer à cultura universal.

ps: em 1987 a UNESCO, por iniciativa do governador José Aparecido de Oliveira, incluiu Brasília no acervo dos bens considerados Patrimônio Cultural da Humanidade.

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