TEXTO DE EDUARDO LOURENÇO que me foi enviado pelo cineasta André Luiz Oliveira, autor de "Mensagens", CD com poemas musicados do grande poeta português
Invocação Pessoana
Ou
Do Espírito destas comemorações
Numa passagem do Livro do Desassossego, a realidade escrita mais próxima de si que soube ser, Fernando Pessoa tratou-se de Inconsolável. É um realismo sem ironia, nem heteronímia, e por isso podemos tomar à letra.
Não vamos celebrar o órfão de tudo e de si mesmo, para sua consolação póstuma. Fernando Pessoa a recusou por tardia e absurda: "Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever nato de intérprete de uma parte do nosso século: e quando o compreendam hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é uma pena que tal me acontecesse. E o que escrever isso será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver". Como Pessoa nem sequer é nosso bisavô e seria petulância ensinar-lhe o que ele não ignorou, comemorá-lo e evocá-lo na medida em que isso poderá ter algum sentido, será tudo menos uma reparação de alma ou de memória sem conteúdo. Inventando-se uma vida, sempre outra, tornando-se escritor da vida, transparente como nenhum outro em língua portuguesa, o Inconsolável a si mesmo se consolou. Falar dele será sempre falá-lo. Mas isso não justificaria, só por si, o ritual anterior de uma glória a qual não foi alheio, e que no fundo de si mesmo já, de olhos abertos, para o presente onde estamos, saboreou como quem morre.
Na verdade, Pessoa não precisa de nós, e se nós precisamos dele não é como mendigos de sua glória, apenas como companhia imaginária de uma aventura sem paralelo nas nossas letras, tornada hoje, universal. Já antes dele éramos muitos mas não o sabíamos com aquela lucidez impiedosa que foi a sua. Todavia, o seu grande milagre não foi esse pelo qual, aqui e em toda parte, com convicção, solenidade e alguma ironia, (dele, não nossa), o celebramos. O milagre-Pessoa não foi o de converter em lugar comum da nossa cultura evidencia sempre suspeitada de que cada um de nós é sempre feito de mais pedaços do que há em toda jarra humana. O milagre digno de memória foi o de ter, paradoxalmente, unido o imaginário português, não apenas em volta de si próprio mas do que buscava, novo Ulisses, no oceano da alma moderna inconformada com o seu tormento e fragmentação incuráveis.
O seu amigo Sá Carneiro, que decerto ele não desejaria ver dissociado do que foi uma aventura comum, destinada a florir em novas estrelas num mundo novo, bebeu de um trago esse tormento e essa dispersão entre si e o outro de si, "álcool tão forte que o amanheceu antes da hora". Fernando Pessoa instalou-se e instalou-nos no centro de um labirinto de nova espécie, sem Minotauro visível nem Ariana amorosa, percorreu os seus corredores para parte nenhuma e para toda a parte, perdendo-se de consciente perdição para que nós não achássemos o caminho que já não havia no mapa humano do seu tempo. Essa ausência de caminho é ainda a nossa, com angustia a menos e simulacro a mais. O que lhe custou insônia, pânico e vertigem é-nos dado agora de graça e surpreende-nos menos porque ele existiu. Talvez seja para isso que os Poetas existem – psico-pompoi, como diziam os gregos – para atingir antes de nós as paragens vedadas, pisar sem licença o domínio dos deuses e tornar habitável o inabitável.
Já não nos estranhamos ou nos estranhamos de outra maneira. Como as Bacante a Dionísios, todos nós, críticos, comentadores, leitores e até poetas, legião sem fim de adoradores, o despedaçamos na praça pública. Prova, sem dúvida, que era o deus que no seu delírio lúcido se sonhou, um deus às avessas, num mundo povoado de ídolos que se imaginam deuses. Esta comemoração não tem por fim recolher piedosamente os seus pedaços dispersos nos quatro cantos do espaço pessoano, como Ísis buscando Osíris, mas o de nos interrogar nele e sobre ele, como ele interrogou sem cansaço uma Musa que já não queria nem podia responder e a ele lhe respondeu não respondendo. Do seu silêncio, do nosso silêncio e opacidade de homens modernos, extraiu Pessoa, como um mineiro da pura Noite, os poemas as frases, com que fabricou aquelas constelações que continuam a desfraldar por ele o esplendor nenhum da vida.
Que seria Pessoa , que seria a sua poesia, se não fosse o lugar de uma intérmina para recuperar o irrecuperável – tédio, monotonia, morte, esquecimento – em suma, para conferir um nome ao inomeado, e batizar a Noite – a sua e a dos outros – com aquela doçura que no-la tornou materna e próxima? A alegria dele era estar triste, português duas vezes:
Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada
Amanhã serei feliz
Se para amanhã há estrada
Houve amanhã. Já o havia quando ele o cantava ao contrário. Não houve estrada, houve uma proliferação delas que desembocaram na imensa praça onde ele está soberanamente não estando. Nós não temos mais remédio que estar, movendo-nos parados em torno dessa ausência que nos interpela, nos provoca, acaso cansa a alguns, nos ilumina. Não tenhamos a ilusão de por termo a esta vigília só para ficarmos em sossego ou termos o contentamento de lhe por a mão familiar num braço que ele não quis dar a ninguém para estar só na companhia do universo. Respeitaremos a sua solidão, hoje tão ostensivamente acompanhada. Já sabemos que ele não virá agora para que nós tenhamos a companhia que ele não teve. Ele invocou-se mil vezes como a sua Maga e não apareceu. Foi a sua maneira de se converter no Desejado de si mesmo. Assim se tornou no nosso próprio Desejado instilando no nosso imaginário cultural um desassossego absoluto. É a esse título que ele nos convoca para esta sessão em que o invocaremos sabendo que ele não virá jamais: porque já veio. Gozemos ao menos a ironia de o saber e o esquecer. Se não o esquecêssemos, como haveria esse Encontro?
Tudo é preferível, a suportar a sua ironia, imaginando-o descrevendo-o, escalpelizando-o, como se ele tivesse realmente existido. Foi só poesia, verbo sem sujeito, sujeito em busca do Verbo, anonimato grandioso onde todos cabemos e ele sobra. Até a sua própria ironia é a nossa ironia. Tomemo-loa como escudo e celebremos sem vergonha a sua vida havida por não havida, a sua existência inexistente, a vertiginosa ausência de ser que hoje conhecemos sob o nome Pessoa. Quer dizer, tudo, mas para ele, ninguém:
Quem sou, que assim me caminhei seu eu,
Quem são, que assim me deram aos bocados
A reunião em que acordo e não sou meu:
Inútil pensar que está em nosso poder, a cem anos do seu nascimento, dar-lhe o que os deuses, o seu gênio e a vida não lhe podiam dar. Deram-lhe só o tudo desse nada. Saber isso é não o trocar por quem não foi. Já não será pouco. Isso o devemos todos a Pessoa: deixá-lo em seu enigma para resistir à tentação de imaginar que deciframos o nosso.
Eduardo Lourenço
Vence, Fevereiro de 1988
Lisboa, Dezembro de 1988
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