Foto histórica de Evandro teixeira/ Agência JB
Meiaoito, um poema-roteiro de cinema
Por Luis Turiba
Gosto de ter a consciência de ser uma espécie de poeta-repórter e assim exercito-me mais livremente para transformar fatos reais em viagens de linguagens, criando versos que obviamente subvertam a lógica dos acontecimentos factuais. Todo poema é, no meu entender, o delírio textual de uma realidade.
Assim, para falar da experiência de ter escrito o longo poema "Meiaoito" ao longo desses últimos anos, e publicado recentemente na coleção OIPOEMA (Brasília) parto de duas notícias concretas que estão nos jornais dos últimos meses de 2010.
Na principal coluna política do jornal O GLOBO (10/11/2010), assinada pelo coleguinha Ilimar Franco, há uma pequena nota de seis linhas com o título "Vitória de 68". Ela é muito significativa pois faz uma ponte de mais de 40 anos. Interpretando a vitória eleitoral de sua candidata Dilma Rousself à sua sucessão, o presidente Lula afirmou que aquela "foi uma vitória política da geração de 1968". Só a título de esclarecimento, Lula não chega a ser um fruto da "Geração 68", ao contrário de José Dirceu, Franklin Martins e da própria Dilma.
Como é público, a presidente Dilma participou ativamente do movimento estudantil, caiu na clandestinidade, foi perseguida, entrou para a resistência armada, pegou em armas para luatar contra a ditadura militar, foi presa, maltratada e torturada; mas manteve-se convicta a alguns dos princípios revolucionários que nortearam os que estiveram presentes naquele ambiente de "meiaoito".
Outra notícia que vai facilitar à compreensão do poema: o ex-beatle Paul McCartney, aos 68 anos, fez o público paulista e gaúcho delirar com shows que usando toda a parafernália tecnológica desse século, relembraram antigas canções do conjunto rock-pop mais popular do século passado.
Os Beatles, com suas canções repletas de ricas harmonias e letras românticas e também lisérgicas, funcionaram maravilhosamente como o melhor fundo musical daqueles anos em torno de 68.
Sei da emoção que significa uma vitória eleitoral como a de Dilma Roussef para os que militaram na sua campanha e compartilham de suas idéias. Mas sei, sobretudo, da significativa e extraordinária emoção de estar presente a um show do único Beatle ainda na ativa nesse início do século XXI. Afinal, os Beatles foram faróis transcendentes e fizeram parte dessa revolução como Che Guevara, Bob Dylan e Mao Tsé-Tung.
Diante de uma recordação tão cheia de 68 como os shows de Paul no Brasil, escrevi um breve depoimento no meu blog-diário (WWW.blogdoturiba.blospot.com) que transcrevo aqui para um melhor entendimento do fato:
"Em dezembro de 1982 recebi o "my first prize" na Internationl House School of London, onde estudei por seis meses. Na época, escrevi a melhor redação da classe formada por estrangeiros sobre meus sombrios dias na capital inglesa e ganhei o livro de bolso "The Beatles Lyrics", que passou a ser uma pequena bíblia para mim pois nunca mais dele me separei. No livro, todas as letras da banda que fez a cabeça da minha geração.
Até hoje "Lyrics" é um dos meus livros preferidos, ao lado de "Grande Sertão: Veredas", "Mensagem", "Galáxias", "Viva o Povo Brasileiro", "Dicionário de Aurélio" e alguns poemas de Augusto de Campos e Vinícius de Moraes, além da coleção completa da revista Bric-a-Brac, é claro.
Livrinho esse muito folheado, consultado, recortado, amado, já com as folhas amareladas pelos anos, rabiscado aqui e ali com marcas de amor e vida, desses que a gente vai pensar muito para quem deixar no testamento.
Ontem (7/11) após ver/ouvir no Fantástico Sir Paul McCartney cantando a plenos pulmões logo no início do seu show em Porto Alegre, o velho e inesquecível sucesso dos Beatles "All my loving", corri mais uma vez para o livrinho amarelado e lá estava a lyric na página 29 com um "L" escrito em verde que logo me levou a pensar em Lena Coutinho, que adorava cantarolar essa canção.
Como é pura, inocente e até besta a canção que a todos emocionou e trouxe de volta lembranças de um tempo maravilhoso, onde o sonho de amor e liberdade existia vivo em cada um de nós, beatlemaníacos.
Para você, que leu essa breve introdução, dedico a canção que sacudiu e até hoje sacode a minha geração, pois quem viveu 68 jamais irá esquecê-la:
ALL MY LOVING
Lennon/McCartney
Close your eyes and I´ll kiss you,
tomorrow I´ll miss you
remember I´ll always be true
and then while I´m away
I´ll write home every day
and I´ll send all my loving to you
I´ll pretend I am kissing
and hope that my dreams will come true
and then while I´m away
I´ll write home every day
and I´ll send all my loving to you
All my loving, I will send to you
all my loving, darling, I´ll be true
Close your eyes and I´ll kiss you
tomorrow I´ll miss you
remember I´ll always be true
and then while I´m away
I´ll write home every day
and I´ll send all my loving to you
All my loving, I will send to you
all my loving, darling, I´ll be true
all my loving, I will sendo to you
Então, o ano de 1968 foi na realidade o topo de uma época de radicais transformações em todos os sentidos. Da inocente canção de namoro ao aprendizado da "Internacional Comunista". "Tudo-ao-mesmo-tempo-agora" que na linguagem do poema funciona como cenas interpostas na velocidade de um tempo-espaço de tomada de consciência:
"escancaramento das consciências
ausência de medos & responsas
êxtases & demências
miserere nóbis & ho chin min
elvis & samba de raiz
che & ternurinha
jovens-guardas-vermelhos
guerilheiros de teses e tesões
arqueiras de flechas incendiárias
companheiras & companheiros
a fúria azul dos jeans e tênis
soltou-se pelas ruas do rio
braços acima das metáforas
peitos arfados de argonautas
táticas de silêncios e canções
deus nos liderava até nos fragmentos
mas o diabo tacava fogo no nosso rabo
todos os sonhos ativados
táticas lançadas ao redemoinho
fogueiras das vadias ilusões
tudo a girar a girar a girar
como compacto simples
sputiniks bêbados
em torno do planeta azul
espiões canalhas no parque
da doença infantil do esquerdismo
o som dos beatles na vitrola
satisfaction no beco da garrafa
tropicália & zicartola
mutantes & bob dylan
baseados & coquetéis molotovs
tom jobim versus vandré
hormônios em erupção
espermatozóides alcoólicos
a beira de um ataque histérico
e os cabelos a crescer
(mais que os pentelhos)
em torno daqueles pintos desgovernados
não bastava a só liberdade
nem a palavra nem a atitude
não bastava só bastar
experimentar para provar
as barreiras do impossível
as fronteiras do improvável
as estações do comunismo
da revolução permanente
entre a esquerda festiva
e a militância ideogrâmica
entre o sexo cuba libre
e o grosso calibre sem nexo
entre o ato institucional nº 5
e o circo da avenida central
entre o palco da peça teatral
e o tal poste da esquina
onde queimamos a bandeira ianque
com o fogo de nossos ideais
Mas o poema em questão não tenta explicar o que foi esse rico período histórico. Ele não é uma tese, nem mesmo uma reflexão sociológica, antropológica, musical ou mesmo política no mais puro sentido do que é a política com P maiúsculo.
É simplesmente um poema, delirante, fragmentado, desordenado. Ele explode o sol dos cinco sentidos daquele ano que nem mesmo chegou a ser um ano de 365 dias como mandam os calendários.
Para uma geração de jovens brasileiros, como a minha, o ano de 1968 começou pra valer no dia 28 de março, quando a polícia política da ditadura assassinou à bala do estudante secundarista Edson Luís, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro.
A partir daí, tudo se transformou na minha vidinha classe média (ora do Méier ora da Tijuca), mas totalmente carioca.
Absolutamente tudo começou a acontecer pra valer em nossas vidas na maior intensidade em todos os campos: político, ideológico, cultural e comportamental.
A partir daquela data, meiaoito foi um acontecimento que explodiu em ideias, atitudes e criações. É isso que o poema quer retratar.
Simbolicamente, aquele foi um ano mais curto, porque começou com quase três meses de atraso (28 de março, hoje) e terminou (o sonho acabou, lembram-se) no dia 13 de dezembro, quando os generais liderados por Costa e Silva assinaram o AI-5, oficializando a repressão, a censura, a tortura, o Estado fascista.
Então, simbolicamente, meiaoito para nós, brasileiros e, em especial para os jovens e idealistas estudantes do Rio de Janeiro, foi uma explosão, uma festa, uma farra, uma revolução que pulsa e palpita até hoje em nossas mentes e corações.
Não foi, portanto, um "ano" clássico mas sim um tempo cujos ecos refletem até hoje, conforme as notícias dos jornais que guiaram o início desse texto.
É disso tudo que trata o poema "Meiaoito", que mereceu a Bolsa de Literatura da Funarte de 2007 e graças aos seus recursos pude viajar e entrevistar inúmeros militantes secundaristas como eu que estiveram presentes naquela peleja.
A história do ser humano nesse planeta que ocupamos, se constrói com fragmentos invisíveis, flashes de ideias, pensamentos, reflexões, propostas e ações coletivas e individuais, com invenções, intervenções e atitudes, coragem, amor e loucuras.
Tudo vai se acumulando e se transformando dialeticamente no panelão do tempo/espaço/existência: atos, fatos, broncas, sonhos, perdas, ganhos.
Até que o vulcão do cotidiano explode em mirabolante fotossíntese e sua larva é lançada energeticamente na vida dos homens, transformando-a nem sempre pra pior ou pra melhor. Mas tudo cambia, tudo muda de paradigma, tudo é dialeticamente transformado.
A história é uma grande cobra na espreita de um bote fatal. Bobeou, creu!
Foi assim com "meiaoito", esse tempo destemperado que, tão acertadamente, o escritor carioca Zuenir Ventura ousar dizer que foi o "ano que não acabou." E não vai acabar tão cedo. Um dia desses um velho sábio me indagou:
"- Escuta, quanto zilhões de acontecimentos foram alquimicamente germinados e gerados ao longo da caminhada da humanidade para acontecer um tempo – não exatamente 365 dias - com o sabor daquele 68?
Sabor único, libertário e idealista, estético e político, sexual e saudosista, amado e odiado, doce e amargo, interiorano e planetário. Ponho-me a matutar: realmente os Beatles, que tão genialmente fizeram o fundo musical daquela jornada do nosso tempo, beberam profundamente em Mozart e em Bach para reinterpretar o rock and roll de Elvis Presley e Litlle Richard.
Levo esse papo um tanto kaótico-filosófico, para falar de um tempo tão próximo e tão longe.
O poema "Meiaoito" trata de uma visão absolutamente pessoal da dialética (e da verdade) transformadora deste extraordinário ano que ainda hoje, mais de 40 anos depois, ainda influencia na vida de todos nós. Tanto é que votamos numa candidata de 68 e cantamos as canções desse ano mágico.
Roteiro, roteiro, roteiro. "Meiaoito" foi um tempo de felicidade e descobertas, de paixões e certezas vãs.
Nada no bolso, pedras nas mãos. O que veio depois machucou, mas valeu a pemba.
ah!
meu primeiro grito pós-parto
meu primeiro jato de esperma
minha primeira cabeça raspada
feita e encaminhada ao universo
minha primeira pedra atirada
rumo às trevas por amor
no ardor do combate
meu primeiro era um garoto
que amava os beatles e os rolling stones à vera
(ela é minha menina eu o menino dela)
minha primeira passeata-enterro
o cadáver ainda quente do secundarista
Édson Luís
nosso estandarte dialético
meu primeiro almoço no Calabouço
onde calouro olhei a boca daquela moça
meu primeiro hino de guerra:
ABAIXO A DITADURA
FORA O IMPERIALISMO
O POVO ARMADO
DERRUBA A DITADURA
ABAIXO O IMPERIA......
SHE LOVES
YOU YÊ-YÊ-YÊ
ah!
meu primeiro jaleco manchado
de graxa sangue sonhos esperma
e gasolina dos artefatos explosivos
que fabricamos hoje pela manhã
meu primeiro vietnan interno
contra o curso técnico de mecânica
minha primeira massa de manobra perigosa
minha primeira mesada ao partido comunista
minha primeira cabrocha da mangueira
meu primeiro tesão de gafieira
minha primeira nossa senhora da guerrilha
minha primeira cigarrilha
meu primeiro filme de Godard
na sessão de meia noite no
Cine Paissandu - La Chinoise
minha primeira foice martelo guitarra e tamborim
meu primeiro artigo pseudocientífico
mostrando que homossexualismo era doença
de menino criado por avó
meu primeiro pileque homericopsicodélico
com cachaça do ebó pra exu na base da
JEC do Grajaú
meu primeiro jornal Classe Operária
nas mãos de um pequeno burguês
fumando Continental sem filtro
minha opção pela luta armada
depois de um beijo na namorada
(...)
Trechos do poema "Meiaoito"
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