quarta-feira, 6 de março de 2013

HAY DITADURA, VAMOS DERRUBÁ-LA


Foto histórica de Evandro teixeira/ Agência JB


Meiaoito, um poema-roteiro de cinema


Por Luis Turiba


Gosto de ter a consciência de ser uma espécie de poeta-repórter e assim exercito-me mais livremente para transformar fatos reais em viagens de linguagens, criando versos que obviamente subvertam a lógica dos acontecimentos factuais. Todo poema é, no meu entender, o delírio textual de uma realidade. 

 

Assim, para falar da experiência de ter escrito o longo poema "Meiaoito" ao longo desses últimos anos, e publicado recentemente na coleção OIPOEMA (Brasília) parto de duas notícias concretas que estão nos jornais dos últimos meses de 2010.


Na principal coluna política do jornal O GLOBO (10/11/2010), assinada pelo coleguinha Ilimar Franco, há uma pequena nota de seis linhas com o título "Vitória de 68". Ela é muito significativa pois faz uma ponte de mais de 40 anos. Interpretando a vitória eleitoral de sua candidata Dilma Rousself à sua sucessão, o presidente Lula afirmou que aquela "foi uma vitória política da geração de 1968".  Só a título de esclarecimento, Lula não chega a ser um fruto da "Geração 68", ao contrário de José Dirceu, Franklin Martins e da própria Dilma.


Como é público, a presidente Dilma participou ativamente do movimento estudantil, caiu na clandestinidade, foi perseguida, entrou para a resistência armada, pegou em armas para luatar contra a ditadura militar, foi presa, maltratada e torturada; mas manteve-se convicta a alguns dos princípios revolucionários que nortearam os que estiveram presentes naquele ambiente de "meiaoito".

Outra notícia que vai facilitar à compreensão do poema: o ex-beatle Paul McCartney, aos 68 anos, fez o público paulista e gaúcho delirar com shows que usando toda a parafernália tecnológica desse século, relembraram antigas canções do conjunto rock-pop mais popular do século passado.


Os Beatles, com suas canções repletas de ricas harmonias e letras românticas e também lisérgicas, funcionaram maravilhosamente como o melhor fundo musical daqueles anos em torno de 68.


Sei da emoção que significa uma vitória eleitoral como a de Dilma Roussef para os que militaram na sua campanha e compartilham de suas idéias. Mas sei, sobretudo, da significativa e extraordinária emoção de estar presente a um show do único Beatle ainda na ativa nesse início do século XXI. Afinal, os Beatles foram faróis transcendentes e fizeram parte dessa revolução como Che Guevara, Bob Dylan e Mao Tsé-Tung.


Diante de uma recordação tão cheia de 68 como os shows de Paul no Brasil, escrevi um breve depoimento no meu blog-diário (WWW.blogdoturiba.blospot.com) que transcrevo aqui para um melhor entendimento do fato:

"Em dezembro de 1982 recebi o "my first prize" na Internationl House School of London, onde estudei por seis meses. Na época, escrevi a melhor redação da classe formada por estrangeiros sobre meus sombrios dias na capital inglesa e ganhei o livro de bolso "The Beatles Lyrics", que passou a ser uma pequena bíblia para mim pois nunca mais dele me separei. No livro, todas as letras da banda que fez a cabeça da minha geração.

Até hoje "Lyrics" é um dos meus livros preferidos, ao lado de "Grande Sertão: Veredas", "Mensagem", "Galáxias", "Viva o Povo Brasileiro", "Dicionário de Aurélio" e alguns poemas de Augusto de Campos e Vinícius de Moraes, além da coleção completa da revista Bric-a-Brac, é claro.

Livrinho esse muito folheado, consultado, recortado, amado, já com as folhas amareladas pelos anos, rabiscado aqui e ali com marcas de amor e vida, desses que a gente vai pensar muito para quem deixar no testamento.

Ontem (7/11) após ver/ouvir no Fantástico Sir Paul McCartney cantando a plenos pulmões logo no início do seu show em Porto Alegre, o velho e inesquecível sucesso dos Beatles "All my loving", corri mais uma vez para o livrinho amarelado e lá estava a lyric na página 29 com um "L" escrito em verde que logo me levou a pensar em Lena Coutinho, que adorava cantarolar essa canção.

Como é pura, inocente e até besta a canção que a todos emocionou e trouxe de volta lembranças de um tempo maravilhoso, onde o sonho de amor e liberdade existia vivo em cada um de nós, beatlemaníacos.

Para você, que leu essa breve introdução, dedico a canção que sacudiu e até hoje sacode a minha geração, pois quem viveu 68 jamais irá esquecê-la:

ALL MY LOVING

Lennon/McCartney

 

Close your eyes and I´ll kiss you,

tomorrow I´ll miss you

remember I´ll always be true

and then while I´m away

I´ll write home every day

and I´ll send all my loving to you

 

I´ll pretend I am kissing

and hope that my dreams will come true

and then while I´m away

I´ll write home every day

and I´ll send all my loving to you

All my loving, I will send to you

all my loving, darling, I´ll be true

 

Close your eyes and I´ll kiss you

tomorrow I´ll miss you

remember I´ll always be true

and then while I´m away

I´ll write home every day

and I´ll send all my loving to you

 

All my loving, I will send to you

all my loving, darling, I´ll be true

all my loving, I will sendo to you

 

 

Então, o ano de 1968 foi na realidade o topo de uma época de radicais transformações em todos os sentidos.  Da inocente canção de namoro ao aprendizado da "Internacional Comunista". "Tudo-ao-mesmo-tempo-agora" que na linguagem do poema funciona como cenas interpostas na velocidade de um tempo-espaço de tomada de consciência:

"escancaramento das consciências

ausência de medos & responsas

êxtases & demências

miserere nóbis & ho chin min

elvis & samba de raiz

che & ternurinha

jovens-guardas-vermelhos

guerilheiros de teses e tesões

arqueiras de flechas incendiárias

companheiras & companheiros

 

a fúria azul dos jeans e tênis

soltou-se pelas ruas do rio

braços acima das metáforas

peitos arfados de argonautas

táticas de silêncios e canções

deus nos liderava até nos fragmentos

mas o diabo tacava fogo no nosso rabo

todos os sonhos ativados

táticas lançadas ao redemoinho

fogueiras das vadias ilusões

tudo a girar a girar a girar

como compacto simples

sputiniks bêbados

em torno do planeta azul

espiões canalhas no parque

da doença infantil do esquerdismo

 

o som dos beatles na vitrola

satisfaction no beco da garrafa

tropicália & zicartola

mutantes & bob dylan

baseados & coquetéis molotovs

tom jobim versus vandré

hormônios em erupção

espermatozóides alcoólicos

a beira de um ataque histérico

e os cabelos a crescer

(mais que os pentelhos)

em torno daqueles pintos desgovernados

não bastava a só liberdade

nem a palavra nem a atitude

não bastava só bastar

experimentar para provar

as barreiras do impossível

as fronteiras do improvável

as estações do comunismo

da revolução permanente

 

entre a esquerda festiva

e a militância ideogrâmica

entre o sexo cuba libre

e o grosso calibre sem nexo

entre o ato institucional nº 5

e o circo da avenida central

entre o palco da peça teatral

e o tal poste da esquina

onde queimamos a bandeira ianque

com o fogo de nossos ideais

 

Mas o poema em questão não tenta explicar o que foi esse rico período histórico. Ele não é uma tese, nem mesmo uma reflexão sociológica, antropológica, musical ou mesmo política no mais puro sentido do que é a política com P maiúsculo.

É simplesmente um poema, delirante, fragmentado, desordenado. Ele explode o sol dos cinco sentidos daquele ano que nem mesmo chegou a ser um ano de 365 dias como mandam os calendários.

Para uma geração de jovens brasileiros, como a minha, o ano de 1968 começou pra valer no dia 28 de março, quando a polícia política da ditadura assassinou à bala do estudante secundarista Edson Luís, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro.

A partir daí, tudo se transformou na minha vidinha classe média (ora do Méier ora da Tijuca), mas totalmente carioca.

Absolutamente tudo começou a acontecer pra valer em nossas vidas na maior intensidade em todos os campos: político, ideológico, cultural e comportamental.

A partir daquela data, meiaoito foi um acontecimento que explodiu em ideias, atitudes e criações.  É isso que o poema quer retratar.

Simbolicamente, aquele foi um ano mais curto, porque começou com quase três meses de atraso (28 de março, hoje) e terminou (o sonho acabou, lembram-se) no dia 13 de dezembro, quando os generais liderados por Costa e Silva assinaram o AI-5, oficializando a repressão, a censura, a tortura, o Estado fascista.

Então, simbolicamente, meiaoito para nós, brasileiros e, em especial para os jovens e idealistas estudantes do Rio de Janeiro, foi uma explosão, uma festa, uma farra, uma revolução que pulsa e palpita até hoje em nossas mentes e corações.  

Não foi, portanto, um "ano" clássico mas sim um tempo cujos ecos refletem até hoje, conforme as notícias dos jornais que guiaram o início desse texto.

É disso tudo que trata o poema "Meiaoito", que mereceu a Bolsa de Literatura da Funarte de 2007 e graças aos seus recursos pude viajar e entrevistar inúmeros militantes secundaristas como eu que estiveram presentes naquela peleja.

A história do ser humano nesse planeta que ocupamos, se constrói com fragmentos invisíveis, flashes de ideias, pensamentos, reflexões, propostas e ações coletivas e individuais, com invenções, intervenções e atitudes, coragem, amor e loucuras.

Tudo vai se acumulando e se transformando dialeticamente no panelão do tempo/espaço/existência: atos, fatos, broncas, sonhos, perdas, ganhos.

Até que o vulcão do cotidiano explode em mirabolante fotossíntese e sua larva é lançada energeticamente na vida dos homens, transformando-a nem sempre pra pior ou pra melhor. Mas tudo cambia, tudo muda de paradigma, tudo é dialeticamente transformado.

A história é uma grande cobra na espreita de um bote fatal. Bobeou, creu!

 

 

Foi assim com "meiaoito", esse tempo destemperado que, tão acertadamente, o escritor carioca Zuenir Ventura ousar dizer que foi o "ano que não acabou."  E não vai acabar tão cedo. Um dia desses um velho sábio me indagou:

"- Escuta, quanto zilhões de acontecimentos foram alquimicamente germinados e gerados ao longo da caminhada da humanidade para acontecer um tempo – não exatamente 365 dias - com o sabor daquele 68?

Sabor único, libertário e idealista, estético e político, sexual e saudosista, amado e odiado, doce e amargo, interiorano e planetário. Ponho-me a matutar: realmente os Beatles, que tão genialmente fizeram o fundo musical daquela jornada do nosso tempo, beberam profundamente em Mozart e em Bach para reinterpretar o rock and roll de Elvis Presley e Litlle Richard.

Levo esse papo um tanto kaótico-filosófico, para falar de um tempo tão próximo e tão longe.

O poema "Meiaoito" trata de uma visão absolutamente pessoal da dialética (e da verdade) transformadora deste extraordinário ano que ainda hoje, mais de 40 anos depois, ainda influencia na vida de todos nós.  Tanto é que votamos numa candidata de 68 e cantamos as canções desse ano mágico.

Roteiro, roteiro, roteiro. "Meiaoito" foi um tempo de felicidade e descobertas, de paixões e certezas vãs.

Nada no bolso, pedras nas mãos. O que veio depois machucou, mas valeu a pemba.

 

ah!

meu primeiro grito pós-parto

meu primeiro jato de esperma

minha primeira cabeça raspada

feita e encaminhada ao universo

 

minha primeira pedra atirada

rumo às trevas por amor

no ardor do combate

 

meu primeiro era um garoto

que amava os beatles e os rolling stones à vera

(ela é minha menina eu o menino dela)

minha primeira passeata-enterro

o cadáver ainda quente do secundarista

Édson Luís

nosso estandarte dialético

meu primeiro almoço no Calabouço

onde calouro olhei a boca daquela moça

 

meu primeiro hino de guerra:

ABAIXO A DITADURA

FORA O IMPERIALISMO

O POVO ARMADO

DERRUBA A DITADURA

ABAIXO O IMPERIA......

SHE LOVES

YOU YÊ-YÊ-YÊ

 

ah!

meu primeiro jaleco manchado

de graxa sangue sonhos esperma

e gasolina dos artefatos explosivos

que fabricamos hoje pela manhã

meu primeiro vietnan interno

contra o curso técnico de mecânica

minha primeira massa de manobra perigosa

minha primeira mesada ao partido comunista

 

minha primeira cabrocha da mangueira

meu primeiro tesão de gafieira

minha primeira nossa senhora da guerrilha

minha primeira cigarrilha

meu primeiro filme de Godard

na sessão de meia noite no

Cine Paissandu - La Chinoise

minha primeira foice martelo guitarra e tamborim

meu primeiro artigo pseudocientífico

mostrando que homossexualismo era doença

de menino criado por avó

meu primeiro pileque homericopsicodélico

com cachaça do ebó pra exu na base da

JEC do Grajaú

 

meu primeiro jornal Classe Operária

nas mãos de um pequeno burguês

fumando Continental sem filtro

minha opção pela luta armada

depois de um beijo na namorada

(...)

 

Trechos do poema "Meiaoito"

 

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