quinta-feira, 18 de março de 2010

CRÔNICA DE ANA MIRANDA HOMENAGEIA JOSÉ MINDLIN

Mindlin em Brasília

 

 

         Nosso querido bibliófilo, José Mindlin, pessoa maravilhosamente afável e encantadora, dedicou sua vida a formar uma das mais elevadas bibliotecas brasileiras, contendo livros e documentos raríssimos. Agora partiu, e legou-nos essa riqueza prodigiosa. A impressionante história da formação da biblioteca Mindlin está registrada num livro de memórias que ele, mais uma vez generoso, escreveu para "talvez estimular em outros o amor ao livro, e, principalmente, o amor à leitura", como ele revela num começo de conversa. Sem inclinações para falar sobre si mesmo, diz ter escrito o livro "meio contra a vontade", mais para atender a uma insistência de amigos.

Em Uma vida entre livros, Reencontros com o tempo, acompanhamos a longa e vasta organização da biblioteca, feita com devoção e leveza, como se fosse a educação da memória, a formação de um museu da consciência humana. Conhecemos ali as obsessões de um enamorado dos livros e da leitura, a emoção do encontro com um volume raro, aspectos de uma vida edificante, a amizade e convívio com escritores; e, principalmente, o trabalho fervoroso de encontrar livros e ser encontrado por eles, desde menino, quando Mindlin adquiriu seus primeiros exemplares infantis. Como não poderia falar sobre todos os livros que reuniu, e leu, ele destaca algumas obras, assim como algumas batalhas na busca de uma peça almejada. São cativantes as suas aventuras, como a obstinada e paciente cruzada para adquirir a edição princeps de O guarani, "dezessete anos de espera e muitas emoções"; ou sua talentosa estratégia para, sem recursos, adquirir livros, ainda menino de calças curtas.

As imagens apresentadas no livro nos deixam suspensos: a bela primeira edição dos Essais de Montaigne (1588); livros autografados por Machado de Assis; a primeira prova de O mundo coberto de pennas (1938), com o título corrigido a mão por Graciliano Ramos, para Vidas secas; dedicatórias de Drummond; os originais de Grande sertão: Veredas, mostrando o trabalho incansável de correções a que se dedicava Guimarães Rosa; manuscritos, pergaminhos, aquarelas, capas de belíssimas edições, encadernações, mapas, litografias; a sublime carta manuscrita de padre Antonio Vieira... E, dentre todas, a imagem mais admirável a se contemplar: a própria biblioteca, imersa na harmonia de um templo em que cada livro seria uma santidade, na sua ordenada sabedoria. Há duas poltronas, onde paira a sua presença, Mindlin se sentava ali para conversar, entusiasmado, sobre livros. O ex-libris, selo com o qual imprimia seu espírito nos exemplares, leva uma frase de Montaigne: "Não faço nada sem alegria."

Seu livro de memórias, escrito com essa alegria jovial e estilo puro, límpido, deleitoso, é fruto de um encontro brasiliense, como ele mesmo conta. Mindlin costumava falar de seu amor pelos livros em palestras e entrevistas, e uma delas, "das mais marcantes", foi a que deu a jovens de Brasília, editores da revista Bric-a-Brac: nosso poeta Luis Turiba; o artista visual Luis Eduardo Resende, o Resa; e os jornalistas Lucia Miranda Leão e João dos Reis Borges. A entrevista, publicada posteriormente pela biblioteca de livros raros sobre as Américas, a John Carter Brown Library, estrutura o livro de memórias, que Mindlin imaginou como "uma prolongada conversa, embora unilateral, que se poderia classificar de um conjunto de respostas sem perguntas". É a história de um espírito sem limites.

        

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