quinta-feira, 11 de março de 2010

KIRYRÍ no RECIFE, O MITO HUMBERTO MAURO

 
Diário de Pernambuco
Recife/PE
Caderno Viver - 11 março 2010
Tiragem: 35.000 exemplares/diário/maior jornal de Recife
 
 
Mito fundador do cinema nacional
Livro traz entrevistas, depoimentos e rica iconografia sobre Humberto Mauro
André Dib
andredib.pe@dabr.com.br


Dos mitos fundadores do cinema nacional, Humberto Mauro (1897 - 1983) é um dos maiores. Ao mesmo tempo, seu nome permanece envolto em névoa para a maioria dos brasileiros, inclusive cinéfilos afeitos à filmografia brasileira.

Diferente das biografias tradicionais, Kiryrí Rendáua Toribóca Opé: Humberto Mauro revisto por Ronaldo Wernek tem recorte afetivo e reúne comentários de vários nomes da cinematografia brasileira
Quais foram as suas convicções? Por que, em meados dos anos 1920 um eletricista do interior mineiro escolheu o cinema como atividade para uma vida inteira? Um importante documento a respeito de Mauro acaba de ser lançado pelo jornalista Ronaldo Werneck, que pesquisou toda a obra e conviveu com o cineasta nos últimos anos de vida. Kiryrí Rendáua Toribóca Opé: Humberto Mauro revisto por Ronaldo Werneck (Arte Paubrasil, R$ 69,90) reúne entrevistas, depoimentos e rico material iconográfico levantado em seis anos de pesquisa.

O extenso material foi organizado em recorte afetivo e por isso não-linear, o que torna o livro diferente das biografias tradicionais. "Quis deixar o Mauro falar. Embora contenha itens básicos de uma biografia, ele vai se fragmentando, através de impressões que tenho sobre ele, seus filmes e textos escritos por Glauber Rocha, Paulo Emílio Salles Gomes, André Andries E Alex Viany. "Fui marcando esses textos e fiz um recorte que dialoga com outros livros".

Werneck é natural de Cataguases, cidade que nos anos 20 ficou marcada por um ciclo de produção de filmes semelhante aos do Recife. Vários filmes de Mauro foram rodados lá, como Thesouro perdido (1927) e Brasa dormida (1928). Na década seguinte, iria para o Rio, onde dirigiu Ganga bruta e A voz do carnaval, ambos de 1933. Em 1961, aos 18 anos, o futuro jornalista encontrou o famoso cineasta pela primeira vez, por ocasião de um festival de cinema em que Glauber Rocha também foi convidado. "Era um momento de redescoberta do Mauro. Nequele tempo Glauber estava lançando Barravento", lembra Werneck.

Glauber precisava de referências para seu Cinema Novo e viu no "cinema puro" de Mauro o equivalente a Grifith, a Eisenstein. Em Revisão crítica do cinema brasileiro, Glauber lamenta a falta de apoio a Mauro, Mário Peixoto, Alberto Cavalcanti (que fez seus filmes na Europa) e aos produtores Adhemar Gonzaga e Carmen Santos no momento em que o cinema europeu e norte-americano se afirmavam. Caso contrário, o cinema brasileiro seria poderoso. Mas relativiza: "na Europa ele talvez tivesse feito menos filmes, porque somente no Brasil poderia, numa indústria amadorística, manter integridade profissional e liberdade criadora".

"Glauber dizia que os filmes de Mauro eram puros, não no sentido de primitivos, mas de seminais. Creio que ele se identificava com o antecessor porque ambos faziam cinema de intuição, inaugural, que não bebe em tradição alguma", diz Werneck, que enxerga no cineasta Vladimir Carvalho um continuador dessa linhagem que busca uma linguagem brasileira, com temas brasileiros.

A amizade entre Mauro e Werneck começou nos anos 70, após um perfil preparado pelo último para a revista Vozes. "Sempre passava em Volta Grande. Mauro era interessantíssimo no falar, ele falava como se estivesse filmando. Ele era um mineirão bem-humorado, inteligente e curioso. Aliás, ele entrou no cinema pela curiosidade e fascínio pelo equipamento, para saber como a filmadora e o projetor funcionam. Depois, se afirmou como autor".

De volta a Cataguases, no fim dos anos 90, Werneck participou da construção de um centro cultural e um memorial para Humberto Mauro. "A pesquisa rendeu dez pequenos filmes e isso me deu muito material. O livro é minha maneira de homenagear Mauro". Avesso às novas tecnologias, Humberto Mauro via no cinema falado uma redundância que fere os ouvidos. Antes, diz ele em texto publicado no livro, a imaginação trabalhava muito mais. E que o cinema brasileiro não precisa caminhar com o cinema estrangeiro e sim transportar para a tela o ambiente brasileiro, para que o público conheça o Brasil através do cinema. Que estranha os Barreto rodarem Dona Flor e seus dois maridos com R$ 2,5 milhões. Que queria filmar o Eclesiastes, começando em Volta Grande até chegar ao Rio Amazonas. Curioso imaginar o que o desbravador mineiro diria sobre o cenário atual.

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