Por linhas tortas
Nunca conheci quem tivesse escrito uma merda.
Todos os meus conhecidos têm sido brilhantes em tudo o que escrevem.
E eu, tantas vezes cego, tantas vezes burro, tantas vezes tímido,
eu tantas vezes ireresponsavelmente plagiário,
indesculpavelmente preguiçoso,
eu que tantas vezes não tenho tido paciência pra consultar o dicionário,
eu que tantas vezes tenho sido rídículo, vaidoso,
que tenho cortejado os elogios fúteis e desprezado as críticas honestas,
que tenho escrito poemas grotescos, tacanhos, redundantes e pretenciosos,
que tenho deletado mais da metade do que escrevo,
que, quando deleto, tenho me arrependido de cada poema publicado;
eu, que tenho submetido meus poemas ao julgamento de gente que eu desprezo
e tenho me sentido humilhado pelo desprezo dessa maesma gente;
eu, que não como ninguém com meus versos românticos,
eu, que não choco ninguém com meus versos satânicos,
eu, que tenho passado noites em claro pensando num advérbio ou num adjetivo,
eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conhço e que troca e-mails comigo
nunca errou uma concordância, nunca se enredou numa falácia,
nunca foi senão genial - todos gênios - na vida e na literatura...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
que confesse, não um bloqueio criativo, mas uma ingenuidade;
que contasse, não que seu livro não vendeu, mas que não valia o preço da capa!
Não, são todos mestres de Homero e instrutores de Shakespeare,
se os ouço e se falam comigo.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez escreveu uma frase feita?
Ó gênios, meus irmãos,
caralho, estou de saco cheio de Rimbauds e Mallarmés!
Onde é que há gente no mundo?
Então só eu que sou burro e pouco original nesta terra?
Poderão ter sido achincalhados pela crítica,
podem ter sido ignorados por Deus e o mundo,
mas terem escrito uma frase ridícula, nunca!
E eu, que tenho escrito frases ridículas cotidianamente,
cercado por tantos gênios, como posso querer ser lido com atenção?
Eu, que tenho sido estúpido, literária e literalmente estúpido,
estúpido no sentido simplório e bruto da estupidez.
Marco Catalão (publicado no Suplemento Literário - Belo Horizonte ago/2009)
Trecho do editorial
"Garimpado entre as centenas de livros de poesia que concorreram ao último Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, um deles - que não foi vencedor - chamou nossa atenção por sua criatividade e coragem em parodiar versos consagrados. Trata-se de O Canône acidental, que já no título brinca com o Cânone ocidental, de HaroldBloom. Seu autor, mais tarde identificado como Marco Aurélio Pinoti Catalão (nome literário Mario Catalão), é um paulista de 35 anos, residente em Campinas - SP. Nesse livro o poeta dá sua versão atualizada, bem-humorada e às vezes até furiosa de poemas clássicos de Carlos Drumond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos e até mesmo de Fernando Pessoa, seu famoso "Poema em linha reta" transformado em "Por linhas tortas", na versão "catalã".
O número do suplemento literário que contém este poema foi um presente que o poeta Ademir Assunção, meu vizinho, me presenteou no início desta semana e compartilho com os amigos.
abs, Juvenal
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