quinta-feira, 4 de março de 2010

JOSÉ MINDLIN RESPONDE A DUAS PERGUNTAS DA REVISTA BRIC-A-BRAC

 
Mais duas perguntas com suas respectivas resposta da entrevista que José Mindlin deu, em 1987, à revista Bric-a-Brac
P- Qual o segredo para reunir tantos livros raros? Persistência, sorte? O Senhor decidiu formar uma biblioteca ou isso foi conseqüência natural do trabalho de uma pessoa interessada em leitura?

 

JM - Não há grande segredo. É preciso saber o que se quer, estudar e conhecer livros, ler catálogos – meu irmão Henrique, aliás, caçoava de mim dizendo que minha cultura era de catálogos, o que em parte é verdade – garimpar sempre, viver de olhos abertos, explorar todas as oportunidades, porque nunca se sabe o que pode surgir, e, finalmente, ter sorte, se é que a sorte existe. A gente procura o livro, e o livro procura a gente. Isso aconteceu comigo uma porção de vezes. Quanto à decisão de formar a biblioteca, não me lembro bem como foi. Eu cresci num ambiente cultural, mas o gosto de meu pai sempre foi dirigido para as artes plásticas. Creio que herdei o seu gosto, e o sexto sentido que ele tinha para encontrar os livros, embora os outros campos da cultura também me atraiam. Comecei a ler coisas mais sérias bem cedo – aos 13 anos, quando comprei o primeiro livro antigo, imagino que devia parecer um menino pernóstico, pois já tinha lido a História das Religiões de Salomão Reinach, e começado a ler Shakespeare, depois de ver o Sonho de uma noite de verão filmado por Max Reinhardt. Mas lia também Júlio Verne, e, aos 60 anos, deliciei-me com Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. De modo que me parece que consegui um razoável equilíbrio durante a vida. A biblioteca foi crescendo quase por si mesma, e só alguns setores, como, por exemplo, a Brasiliana, foram planejados. Não creio que eu possa dizer que a biblioteca foi desde o início um projeto de vida. Mais tarde, sim, ela se tornou isso, mas nos primeiros tempos foi simplesmente acontecendo, creio eu, como, aliás, quase tudo em minha vida. Nunca tinha pensando, por exemplo, em ser empresário, ou em ser Secretário de Cultura. O que eu acredito que fiz, foi conseguir julgar com critério as coisas que iam acontecendo, ver se se encaixavam comigo, e ir tocando a vida. Olhando para trás, minha sensação é de ter acertado. Minha grande queixa da vida, como eu disse há pouco, é ela ser muito curta. Mas isso a gente tem de aceitar, tirando o melhor partido do que ela proporciona, no sentido da satisfação íntima. É o que eu sempre procurei fazer, e continuo fazendo. Enquanto durar, tudo bem.

 

P - "... era o dono da maior biblioteca particular da cidade. Carregava sempre alguns livros consigo. Sua paixão de bibliófilo, a única que se permitia em uma vida austera e cheia de trabalho, obrigava-o a ser cauteloso. Qualquer livro, mesmo os ruins, dava-lhe vontade de comprar." Trata-se de Peter Kien, o personagem central do romance Auto-de-Fé, de Elias Canetti, dono de uma biblioteca de 25 mil volumes que vivia de tal forma envolvido com seus livros que perdeu o contato com o mundo real, e não sabia como enfrentar suas contradições e dilemas. Para ele, a vida se abria da porta para o interior de sua biblioteca. Qual a diferença entre Peter Kien e José Mindlin? Em troca de quê o Senhor abriria mão de sua biblioteca?

 

JM - (...) Eu tenho muita vida interior, da qual a biblioteca faz parte, mas é apenas uma parte. Sou também muito voltado para fora. Meu interesse cultural não é apenas um prazer individual egoístico, pois sempre achei importante participar do processo cultural, promover a cultura, e apoiá-la em toda a extensão das minhas possibilidades. Em relação aos livros, não tenho o fetiche da propriedade. Acumulei livros mais como um depositário do que como um proprietário, visando preservar uma herança do passado, e conservar o que se faz do bom agora, com o propósito de transmitir isso para o futuro. Tenho procurado desenvolver uma atividade cultural em várias frentes, facilitar a estudiosos a pesquisa na minha biblioteca, promover edições de obras úteis e reedição de obras esgotadas que considero importantes, desenvolver, em suma, um trabalho que de certo modo é minha razão de vida. Peter Kien, como vocês vêem, é na realidade uma personalidade oposta à minha. Ele é, a meu ver, profundamente infeliz. Eu, ao contrário, sinto-me feliz, e se tenho queixa da vida, é de ela ser muito curta. Quanto à sua pergunta sobre as condições em que poderia abrir mão de minha biblioteca, posso dizer que trocaria de bom grado 2/3 dela por metade da minha idade. Isso, naturalmente, para recomeçar tudo de novo...

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