segunda-feira, 1 de março de 2010

A LOUCURA MANDA DE UM PROCURADOR DE RUÍNAS

 

Um papo com JOSÉ MINDLIN

 

(abertura da histórica entrevista de Mindlin à revista Bric-a-Brac)

 

Por João Borges

 

            "Aqui começa o livro, em que você tem Deus ordenando aos anjos a criação do mundo; aqui você tem o Nada; aqui você tem as estrelas,

depois os pássaros, as árvores, o mar, os peixes; e Adão, a Terra, a Água, o Ar, o Fogo, os planetas, o vento; Eva saindo da costela, a tentação."

 

            Essa é apenas uma das portas de acesso à biblioteca do José Mindlin.

No caso, o procurador de ruínas, como definiram Guilherme Cesar e Francisco Inácio Peixoto, fala enquanto folheia a Crônica de Nuremberg, um dos mais importantes livros raros do mundo.

            A Crônica de Nuremberg narra a criação do Universo, mistura historio sagrada e profana, e o trecho acima dá apenas uma idéia longínqua de como o livro é ilustrado de fora rica, variada e criativa. de uma página para outra é possível ler o livro sem conhecer uma palavra de latim. Mas essa é apenas uma das infinitas portas de acesso ao estonteante universo de cerca de 20n mil livros de Mindlin – que se diz depositário e não proprietário de tudo isso -, dos quais dez mil podem ser catalogados como raros.

            Os editores de Bric-a-Brac – João Borge, Lúcia Leão, Resa e Luis Turiba - estiveram por três vezes nesse santuário bibliográfico. Depois de horas e horas de conversa, manuseios e comentários sobre detalhes incríveis de tantas raridades, é inevitável rever o auto-conceito de depositário.

É muito mais do que isso. Mindlin anula a temporalidade e consegue com naturalidade dar vida e voz a livros, dedicatórias, documentos, diários e tudo que vai saltando de intermináveis estantes que circundam a sua sala de visitas e dois pavilhões contíguos.

            Ouve-se intenso e variado rumor ao percorrer séculos de páginas impressas. A entrevista em que publicamos foi feita por escrito, numa troca de correspondência entre janeiro e junho.

            Certa vez, João Cabral de Mello Neto, hóspede de Mindlin, ficou intrigado ao verificar que existiam três livros idênticos das poesias completas de Machado de Asssis.

Não, não são idênticos. Um erro de revisão, no texto de apresentação, deu origem a três livros diferentes. No primeiro livro, na troca do e pela a lemos a palavra cagara no lugar de cegara. No segundo, de próprio punho, Machado de Assis faz a correção. No terceiro, a impressão definitiva.

Não sei como o Machado não teve um ataque de apoplexia, comenta Mindlin. Enfim, um pequeno detalhe que confere ao livro o status de raro. Mas o que dizer da primeira edição ilustrada de Petrarca, de 1488, da qual se conhecem menos de 100 exemplares em todo o mundo? Numa outra, de 1533, um soneto de Petrarca contra o papado foi censurado depois de impresso. Os versos malditos foram cobertos a nanquim. Com o tempo, o nanquim esmaeceu e sob ele reapareceram os versos censurados. O tempo foi mais forte que a censura.

            José Mindlin sabe misturar episódios de sua vida pessoal, conversas com escritores amigos a peculiaridades de uma dedicatória, de uma anotação perdida. Num encontro com Guimarães Rosa na Europa, o autor de Grande Sertão: Veredas confessou que precisava se de desfazer de uma coleção e livros eróticos. Estava de volta o Brasil e não podia levar os livros para casa por causa das duas filhas adolescentes. Quis convencer Mindlin a ficar com os livros. Isso foi na década de 40. Hoje Mindlin se arrepende, mas na época recusou a coleção com o mesmo argumento que Rosa utilizou para ofertar-lhe: E as minhas filhas? Para os padrões da época poderia ser um escândalo. Mas hoje...

            A paixão pelos livros aproximou Mindlin de inúmeros escritores. Especialmente de Carlos Drummond de Andrade, de quem guarda com orgulho o único exemplar de O Amor Natural, o livro erótico que deverá agora sair em edição regular pela Alumbramento. Na véspera de morte de Drummond, Mindlin esteve em seu apartamento, no Rio. Foi talvez a última visita que o poeta recebeu. Falamos sem parar durante três horas e ele contou, como nunca, detalhes de sua vida íntima, recorda Mindlin.

            De Petrarca, Montaigne, à Revista Verde, de Cataguases e curiosos registros de Oswald de Andrade é possível passar para as coisas mais mundanas. Como por exemplo, o diário da Condessa do Barral.

            Preceptora dos filhos de Dom Pedro II e aparentemente sua amante, a Condessa redigiu um diário, montado em delicados cadernos que eram aos poucos entregues a ele. Mindlin possuiu 29 desses caderninhos. Numa das passagens, ela descreve um local em que ambos estiveram e indaga: Será que vocês se lembra? Dom Pedro faz ma anotação a lápis: Oh, se me lembro. E como! Pela voz de Mindlin é possível resgatar dos séculos o suspiro do imperador.

            Ele é um leitor insaciável. Indisciplinado confesso. O apetite pela leitura e um assumido prazer por raridades guiaram o rumo da biblioteca. Lê mais de um livro ao mesmo tempo, aproveitando ao máximo os pequenos intervalos. Como tem motorista, não se aborrece com engavetamentos de trânsito em São Paulo: são algumas páginas a mais que lê. Quando sai do carro leva consigo os livros. \ASe roubarem o carro não interrompo a leitura, diz.

            Na sala de visitas de sua casa estão os dois mil primeiros livros da biblioteca. Ele dispôs as poltronas de forma que o visitante fique sempre entre o anfitrião e as estantes. Se, ao fim de uma hora, o interlocutor não manifestar interesses pelos livros, não der pelo menos uma olhada curiosa, verá Mindlin bater com as duas mãos sobre os joelhos e, numa frase seca e conclusiva, dizer: Bom acho que já chegamos a um acordo, não é mesmo?

Para qualquer assunto que não sejam livros uma hora é tempo demais. Para os livros não há limites. E, ao fim de horas de conversa, Mindlin conclui:

Aqui vocês tiveram a noção de uma loucura mansa. Julio Cortazar foi outro visitante do procurador de ruínas. Um dia quis saber o nome de uma flor que crescera ali no pequeno jardim que separa os três módulos da biblioteca. Não se perturbou com o não sei de Guita, esposa de Mindlin.

No importa, la flor tampoco lo sabe. A flor, vigorosa loucura, naquele dia e lugar.

 

Um comentário:

Amneres disse...

Que belos diálogos, que bela e poética abertura. Realmente, a Bric a Brac fez história, graças à qualidade de seus participantes e graças sem dúvida à sensibilidade de seus editores. Parabéns, amigo, pela justa homenagem ao grande brasileiro José Mindlin.

Amneres