segunda-feira, 1 de março de 2010

QUE TIPO DE LEITOR FOI JOSÉ MINDLIN?

Na histórica entrevista à revista brasiliense Bric-a-Brac, em 1987, logo na primeira pergunta tentamos saber qual o tipo de leitor era Mindlin. Sua resposta é um passeio pelo mundo dos livros.
A partir de amanhã, o blogdoturiba reproduzirá os principais trechos da entrevista que deu origem ao livro "Uma vida entre livros", que levou Mindlin a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Vamos a primeira pergunta: 
Que tipo de leitor é o Sr. José Mindlin? Essas prateleiras com milhares de livros raros, reunindo uma diversidade enorme de edições históricas, tanto sob o ponto de vista cultural quanto editorial, levam a supor que o cidadão Mindlin, além da obra, é um obcecado pelo livro enquanto objeto. Que resposta o Senhor daria a um anônimo cidadão das ruas que, numa esquina qualquer, por acaso lhe perguntasse: o que leva uma pessoa a ter em casa mais de 100 edições de Os Lusíadas?

 

A pergunta mistura uma série de coisas – o tipo de leitor, a atração do livro como conteúdo ou como objeto, a posse do livro, a coleção, e, finalmente, o que deveria vir em primeiro lugar, a leitura. Essas coisas só vão juntas por acaso, ao menos em conjunto, e há uma série de combinações possíveis com os elementos que a compõem. Eu me considero um leitor incansável e indisciplinado. Leio muito desde a infância, livros sobre os mais variados assuntos, desde que atraiam o meu interesse. Não gosto de ler por obrigação, o que, aliás, só raramente acontece. Desconfio dos livros de sucesso, e desses, em geral, só vou ler os que tiveram um tempo de decantação. Se os próprios escritores, aliás, especialmente os principiantes, fizessem isso – pôr o livro na gaveta, depois de escrito, por um ou dois anos, e ver depois disso se o texto resistiu a uma releitura -, é provável que a massa imensa de livros que se publicam no mundo se reduzisse substancialmente. Reconheço, é claro, que isso é meio utópico, e compreendo perfeitamente a impaciência do outro jovem de se ver publicado. A paciência é que não seria natural. Procuro neste assunto ter em mente a frase de Thomas Mann, que a leitura dos bons livros devia ser proibida, porque existem os ótimos, mas não sou tão radical. Há muito livro apenas bom que merece ser lido, e nem sempre o bom e o ótimo são classificados uniformemente por leitores diferentes. Não gosto de livro difícil, a não ser excepcionalmente, e só com boas razões, como Proust, Joyce, e Guimarães Rosa, por exemplo. Essa é, creio eu, uma das minhas grandes afinidades com Montaigne, que li desde a mocidade, especialmente durante as aulas da Faculdade de Direito. E enquanto os professores liam durante 50 minutos suas preleções, que depois eu lia em casa em 15, eu ficava lendo os "Ensaios" e muita coisa mais. Pois Montaigne diz que quando encontra dificuldades na leitura, não se preocupa demais. Abandona-a depois de uma ou duas tentativas, pois se insistisse perder-se-ia e o seu tempo; seu espírito é de compreensão imediata. O que não entende desde logo, entende menos se obstinando. Não faz nada sem alegria. Posso dizer também que é o meu caso. Daí eu me considerar indisciplinado, e a biblioteca, por tabela, também ser. Às vezes o esforço é necessário, e eu me submeto, mas isso geralmente só faço quando tenho boa informação, ou alguém cujo critério respeito recomenda o livro. De pegar espontaneamente e ler uma obra que depois das primeiras 20 ou 30 páginas excede à minha compreensão, por um estilo rebarbativo ou pedante, não tenho lembrança. Dos que mencionei como difíceis, Proust e Guimarães Rosa passaram a ser leituras e releituras constantes. Joyce, menos, mas aí certamente por falha minha – li primeiro a tradução francesa de Ulysses, que é muito boa e tem a vantagem de decodificar muito mistério; depois o original, e ainda a do Antonio Houaiss, que é um trabalho incrível. Nesta, muitas passagens, mas não houve empatia, e não acredito que vá relê-la. Pelo menos me esforcei. Gosto muito de ficção, de biografia, de ensaios, de história e viagens (especialmente Brasil), crítica literária, e, naturalmente, poesia. Teatro, desde o grego, passando por Shakespeare, Molière, chegando aos nossos dias; roteiros de cinema, e, ocasionalmente, um bom livro policial ou erótico também fazem parte da pauta das leituras, que, como vocês vêem, não é pequena. Mas devo dizer que leio meio desordenadamente, passando de um assunto a outro muito diverso, ou mesmo lendo dois ou três livros ao mesmo tempo, sem me preocupar se isso se deve ou não se deve fazer. Não tenho preconceitos sobre isso – aliás, evito o preconceito em geral. Faltou falar nos livros de arte, mas aí confesso que olho muito do que leio. Se alguém se escandalizar lendo isso, paciência – é a pura verdade.

 

Mas vamos ver se consigo responder à pergunta toda. De fato, além do conteúdo, o livro, conforme a edição, a encadernação, a diagramação, a ilustração, ou o papel, tem para mim uma atração física. Ver um livro numa vitrine, sem poder pegá-lo, positivamente não me satisfaz. Minha tese é que a gente deve poder tocar naquilo que gosta, sentir o objeto (ou, se for o caso, a pessoa...). Gosto de gráfica, embora meu conhecimento seja empírico – mas naturalmente, convivendo com o livro a vida inteira, lendo coisas sobre tipografia, diagramação, ilustração, visitando bibliotecas, estudando catálogos e bibliografias, conversando com amigos que sofrem do mesmo mal, a gente acaba aprendendo, e até chega a desenvolver um sentido crítico instintivo – o sexto sentido que advém da experiência. Um bom exemplo foi uma coisa que me aconteceu na Inglaterra, quando perguntei a um livreiro antiquário se tinha uma edição de Rabelais do século XVI. Orgulhosamente, o livreiro tirou da estante um exemplar datado de 1558. Peguei, folheei, e, com certa cerimônia, disse que o livro me parecia ser do século XVII, e provavelmente antedatado. Por que o senhor diz isso? perguntou-me o livreiro, meio espantado. Eu tive que responder que não sabia bem a razão, pois era apenas uma impressão, resultado do toque, da composição, do tipo, sei lá. Fomos consultar uma bibliografia, a lá estava a confirmação de minha dúvida – a edição era de 1630, antedatada, e reconhecível por algumas particularidades da página de rosto, que constavam do exemplar que eu tinha em mãos. Não consegui convencer o livreiro que eu não era um especialista em Rabelais, mas o fato é que não era e não sou, e desconhecia completamente a existência dessa edição. Agora, o que eu responderia a um cidadão anônimo, numa esquina qualquer, que me fizesse a pergunta que vocês imaginaram, dependeria muito da cara do sujeito e da minha avaliação da sua capacidade de compreender os mais variados motivos que levam uma pessoa à aparente maluquice inusitada na pergunta. No meu caso, a Camoneana começou pequena, e foi crescendo no tempo, com edições críticas e comentários que são indispensáveis à boa leitura de Os Lusíadas e até mesmo de outras obras de Camões. Na medida em que começou a surgir um conjunto significativo, foi inevitável a vontade de ir conseguindo as principais edições, seja pelo texto, pois há variantes, seja pelos comentários, pela ilustração, pela apresentação gráfica, e, por que não confessar?, pela raridade, que é um componente importante do prazer. Além disso, há as traduções, e aí, além das legíveis para mim, surge a curiosidade, por exemplo, de uma tradução japonesa. E assim vão crescendo os exemplares. Naturalmente, a motivação básica, no meu caso, foi gostar de Camões, de quem, por felicidade, só li na escola pequenos trechos. Não fui obrigado a fazer a análise lógica que afastou de Camões tanta gente que não sabe o que perde não o lendo. O mesmo se aplica a outros temas, em que o interesse inicial da leitura vai se transformando, no tempo, em coleção. Camões é apenas um exemplo. Uma última coisa deve ser dita, apesar de parecer absurdo a muita gente: em geral, mesmo tendo edições preciosas de muitos autores, especialmente do século XVI ao XIX, até mesmo algumas contemporâneas, é freqüente que eu leia a obra numa edição comum, numa brochura que eu possa carregar comigo sem me preocupar com a conservação. E a edição rara eu abro só de vez em quando, aí também com o prazer físico, curtindo umas páginas como se curtem outros prazeres – por exemplo, um vinho velho, para ser discreto... Mas tanto isso é prazer, que cheguei a ouvir de uma grande amiga – uma coisa engraçada, aliás, de que minha família caçoa muito, é que tenho mais amigas do que amigos... – que minha forma de pegar um livro provocava ciúme! Eu disse que essa era a ultima parte da resposta, mas, para dar idéia do tipo de leitor que sou, há outro detalhe: gosto de arriscar a leitura de autores inteiramente desconhecidos para mim, mas que por motivos às vezes difíceis de definir ou explicar, me atraíram. E tive casos de descobertas que me deram um prazer muito grande. É outro tipo de garimpagem, além da garimpagem do livro raro, que a gente procura porque conhece. Como exemplo dessas descobertas mencionaria três livros que me traíram sem eu saber bem por que, mas cuja leitura recomendo enfaticamente. Um deles é O Evangelho da Incerteza, de Vanda Fabian, escritora mineira editada pela Nova Fronteira, de que eu nunca tinha ouvido falar. Mas que me entusiasmou já há bem uns 20 anos, e que reli no ano passado com o mesmo prazer. Outro foi o diário de uma moça da corte japonesa do século X – Sei Shonagon, onde se vê que as emoções, as intrigas e os interesses humanos fundamentais são muito parecidos através do tempo e do espaço. E outro ainda foi a correspondência de uma moça holandesa do século XVIII – Belle de Zuylen, que depois ficou conhecida como Mme. Charrière – vocês vêem que estudei o assunto -, uma personalidade fascinante por sua inteligência, seu estilo, vivacidade, desinibição, humor e beleza - acho que basta como fatores de sedução, não é mesmo? Era uma moça que nos nossos dias poderia ser considerada bem fora de série. Imaginem então o que deve ter sido no contexto em que ela viveu.

 

 

 

 

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