quarta-feira, 25 de agosto de 2010

FERNANDO PESSOA OCUPA MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA

DEU NO GLOBO
 
Faces do poeta

Fernando Pessoa é celebrado no Brasil com dicionário e grande exposição em SP

Plantão | Publicada em 25/08/2010 às 08h52m

Márcia Abos

SÃO PAULO - Um dos escritores mais intrigantes da língua portuguesa, o poeta Fernando Pessoa (1888-1935) está sendo celebrado duplamente no Brasil: enquanto o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, inaugurou ontem a mostra "Fernando Pessoa - Plural como o universo", uma obra monumental chega às livrarias: "Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português" (Leya). Organizado por Fernando Cabral Martins, um dos maiores especialistas em modernismo português, o dicionário reuniu mais de 80 colaboradores, que produziram 600 verbetes sobre o escritor, sua obra e o movimento que ajudou a definir. Há ainda um filme sobre o poeta, a ser rodado em 2011, com roteiro e direção de Ruy Guerra. Em entrevista ao GLOBO por telefone, de Lisboa, Cabral Martins revela que há muito a ser descoberto sobre Pessoa: cerca de metade de sua produção permanece inédita.

O GLOBO: Há ainda muitos textos inéditos de Fernando Pessoa?

FERNANDO CABRAL MARTINS: Há muitos aspectos de Fernando Pessoa ainda não revelados. Só metade do que ele escreveu foi lido, trascrito e em parte publicado. Há um volume de contos policiais e uma grande produção de contos em geral aguardando edição dos estudiosos. São contos inacabados. O mesmo acontece com o teatro. A importância da prosa na obra de Pessoa era até pouco tempo atrás desconhecida. Antes ele era considerado um poeta. Hoje sabe-se do papel fundamental da narrativa em sua obra, ainda que seja fragmentária, sem começo, meio e fim, textos que não se enquadram nos gêneros literários tradicionais e lineares.

Fernando Pessoa via-se multifacetado e fragmentado como sua obra?

Nos últimos 15 anos da vida de Pessoa, há muitos testemunhos mostrando que os autores imaginários começam a invadir sua vida. Em alguns momentos ele é Álvaro de Campos, noutros Alberto Caeiro, ou Ricardo Reis. Os heterônimos começam como um artifício, no sentido de serem um objeto de arte, mas são criações de tal maneira fortes e intensas, sobretudo o Álvaro de Campos, que Pessoa acaba influenciando a si próprio, como se a criatura se tornasse maior que o criador. A personagem começa a fazer parte do cotidiano do escritor e a interferir em suas relações, como em seu namoro com Ophélia Queiroz, no qual Álvaro de Campos surge como uma terceira pessoa de forma desagradável para Ophélia.

" O aparecimento das figuras imaginárias na vida de Pessoa é bastante perigoso. Revela que há uma dimensão de loucura à espreita "

Jovens poetas que procuravam os conselhos de Pessoa às vezes encontravam em seu lugar Álvaro de Campos, um personagem nada agradável, que bebia muito e com quem era difícil conviver. O aparecimento das figuras imaginárias na vida de Pessoa é bastante perigoso. Revela que há uma dimensão de loucura à espreita. Mas é evidente para mim que ele consegue manter o jogo que criou no limite da sanidade. Nossa unidade é imaginária, frágil, mudamos um pouco todos os dias. Portanto, o que Pessoa concebe ao criar heterônimos e ao tratar da temática de despersonalização e desdobramento do ser é uma linha de pesquisa literária em torno de uma realidade que é humana e universal. Em certos momentos, a coisa pode ter ido longe demais e Pessoa sentia-se um palco para suas invenções literárias, assim como algumas ficções contemporâneas como "Matrix" e "Avatar". Ele nunca deixou que os avatares tomassem o controle, que foi sempre dele, o pobre homem que passava o dia em seu quartinho a escrever.

Por que Fernando Pessoa é o ponto de partida e a referência central do dicionário?

Havia a dificuldade em determinar onde começa e acaba o modernismo português, saber os limites temporais e quais artistas deviam ser considerados como parte ou referências do movimento. Há muitas opiniões divergentes. A importância do movimento em Portugal é muito grande. Em termos relativos, é mais importante o modernismo em Portugal do que foi no Brasil. A empreitada só foi possível graças ao fato de haver em Portugal uma figura que sobreleva todas as outras em importância. Assim conseguimos coerência, colocando Pessoa como figura central. E há ainda uma sorte especial: quando Pessoa morre, em 1935, podemos dizer que o modernismo, se ainda existe, tem características muito diferentes de seu princípio. Fiquei satisfeito ao descobrir que se centrasse a obra em Fernando Pessoa a tarefa de organizar o dicionário seria mais fácil. Para citar um exemplo de como pude fazer uma seleção, é essencial haver um verbete sobre Shakespeare. O escritor inglês é o grande modelo de Pessoa.

Então, Fernando Pessoa é o modernista por excelência?

Sim. Pessoa é a figura do século XX português mais importante dentro do panorama mundial.

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