terça-feira, 8 de setembro de 2009

A MORTE E A MORTE DE MICHAEL JACKSON

Luis Turiba

Em “A morte e a morte de Quincas Berro D´agua”, folhetim obra-prima de Jorge Amado, o cadáver do herói bom vivant beberão é seqüestrado por sua turma de fé e levado em grande farra para uma divertida despedida na boêmia Salvador dos anos 50.
Quincas era o vulgo de Joaquim Soares da Cunha, respeitável funcionário da Receita de Rendas Estadual de Salvador. Desgostoso da vida burocrática e burguesa que levava em família, ele mandou tudo as favas e se tornou um velho libertário e boêmio, amigo de prostitutas e capoeiras.
Do velório, a família foi para casa descansar. Ficaram só a viúva real e os quatro amigos – Quitéria do Olho Arregalado, Pé de Vento, Negro Pastinha, Martim e Curió.
Diz o livro: “começaram a beber. Os primeiros tragos despertaram nos quatro amigos um acentuado espírito crítico. Aquela família de Quincas, tão metida a sebo, revelara-se mesquinha e avarenta. Fizera tudo pela metade. Não havia cadeiras para os convidados. Não havia comidas e bebidas. Haviam esquecido as flores, onde já se viu cadáver sem flores? Negro Pastinha diz a Quincas que estava um defunto porreta. Quincas retribui o elogio com um sorriso. Os quatro começam a rezar mas não terminam. Martim e Curió começam a discutir sobre quem ficaria com a Quitéria do Olho Arregalado depois da morte de Quincas. O defunto não gosta da conversa e resmunga .
Então começam a dar cachaça a Quincas. Depois, trocam sua roupa pelas velhas que ele usava, que estavam jogadas a um canto. As roupas novas do defunto são divididas pelos quatro amigos. Saem pra rua levando o defunto Quincas. Aquela ia ser uma noite memorável.”
Mal querendo comparar, mas comparando; Michel Jackson teve um pós-morte um tanto o quanto parecido com o da ficção de Quincas Berro D´Água. Ambos verbadeiramente cinematográficos. Sim, após o apagamento derradeiro, quando cérebro e coração se desligam para o “nunca mais”, eles foram sequestrados, reciclados, turbinados, injetados de cachaça e compridos químicos e guaribados para uma longa e clamorosa despedida com corpo presente e atuante, em cerimônias repletas babilaques e salamaleques significativos e significantes.
Assim como Quincas, Michael subverteu o sentido e a função da morte. Morreu, mas quase não morreu. O espetáculo continuou e, sinceramente, foi bonita a festa pá. Cantos, danças, trimiliques e até sentimentos de pêsames e luto por parte dos filhos. É: tem gente que morre e esquece de deitar. Michael Jackson foi além: morreu, deitou e rolou.
Um amigo meu, o Fino, que toca percussão zen no Liga Tripa, defendeu dia desses interessante e pragmática tese sobre o velório trimestral de Michael. Para ele, o defunto em questão tinha um valor corporal estupendo e, mesmo apagado total conservado no gelo e na química, sua presença funerária continuou rendendo dividendos para a caixa registradora da família Jackson. Ou seja: o Rei do Pop só foi enterrado depois que a presença do seu corpo conseguiu pagar todas as dívidas imediatas e objetivas. Outras, é verdade, ficaram para ser discutidas no fórum do testamento e na divisão das partilhas.

Outro amigo, o fotógrafo Amaral, jura que na derradeira hora de fechamento do caixão – “quem beijou, beijou. Quem não beijou não beija mais” – Michael olhou em torno para os presentes e, assim como Quincas Berro D´Água, levantou a sobrancelha com a força dos super-remédios e deu aquela piscadinha marota como quem diz: fuuuuuuuuiiiiiiiiiiiii!, ninguém me segura mais.”
De qualquer maneira fica entre nós, passageiros dessa viagem planetária, uma sensação que a morte ganhou novas dimensões pós-morte.
Você pode morrer agora e só ser enterrado depois de 2010. Ou quem sabe em 2015, após a Copa do Mundo no Brasil. É só escolher e pagar, pois o óbito não é mais óbvio.

Um comentário:

LEITURASERVIDANAREDE disse...

grande turiba!!!!!!
mergulhei em seu texto. maravilhoso!!!!! um texto vivo, cheio de alma e, pasmem, falando de morte e mortes. Isso é ser flâneur: captar e descrever as agruras do cotidiano, ainda que sejam agruras, foram descritas de forma poética.vc é mesmo um poeta-flâneur. E por falar em flâneur envie-me a última versão do ANDARILHO, quero ispiar um pouco do seu ato de SER FLÂNEUR pela vida. Inté, poeta. Inté. Edna