domingo, 22 de maio de 2011

IRMÃ DULCE, A SANTA BAIANA

 
 
POR RENATO RIELLA

Irmã Dulce contrariou todas as leis da física: era como se um palito pudesse sustentar um piano. E hoje ele está sendo reverenciada por gente de fé no mundo todo – especialmente na Bahia, cidade do Salvador, sua terra e seu reino.

O início do processo de santificação de Irmã Dulce é fator de grande orgulho para nós, os baianos, que ajudamos a construir – de forma justa e certa – este mito mundial.

Não sei nada sobre Madre Tereza de Calcutá. Sei muito sobre a freira baiana que enfrentou tradições, interesses e preconceitos, para ajudar milhões de pobres - gente sem fé, nem força, sem nome, nem nada.

Nas décadas de 40 e 50, ela desafiou o bispo de Salvador, a prefeitura e outros poderosos, construindo sua obra social em áreas invadidas, para abrigar gente abandonada pelo Estado, pela Igreja e pelo mundo. Cheguei a ver uma manchete do jornal A Tarde em que o Arcebispo mandava Irmã Dulce parar com aquela loucura e ela desobedecia (em nome de Deus, é claro).


HISTÓRIAS DE IRMÃ DULCE

Tenho diversos episódios sobre Irmã Dulce, que ajudam a entendê-la. Fui criado na Cidade Baixa de Salvador, bem perto de onde surgiram três mitos internacionais: o Trio Elétrico de Dodô e Osmar; Raulzito, depois transformado em Raul Seixas; e Irmã Dulce.

Meu pai tinha grande armazém atacadista nessa área, ao lado da Estação Ferroviária. Irmã Dulce, na década de 50, já era uma lenda viva, que invadia lojas para fazer pequenos "arrastões" em nome dos seus pobres.

Numa das vezes, vi a chegada dela na porta do armazém do meu pai, com dois mulatos parrudos. Entraram pelos cantos e saíram com duas caixas de leite ninho (48 latas) – sem pagar, é claro.

Só ouvi meu pai balbuciar, de forma respeitosa: "Irmã, desse jeito vai me quebrar!"

E ela respondeu: "Deus vai lhe devolver em dobro, seu Agenor!" (E não é que devolveu mesmo!)

Noutra oportunidade, ela entrou e saiu do armazém com dois sacos de 60kg de feijão. Nesse dia, minha mãe, Cecília, estava no armazém. Doce (Dulce), a freira voltou-se até meu pai e perguntou: "Quem é esta moça bonita, seu Agenor?" E convidou o casal para visitar, no dia seguinte, o Hospital Santo Antônio, já bastante amplo na década de 60.


AMIGA ATÉ DE ACM

Irmã Dulce era um pouco de tudo. Líder, enfermeira, santa, relações públicas, política sem partido, corajosa. Lidava com todo governador baiano da mesma forma (sem preconceitos), e conseguia o que queria até com Toninho Malvadeza, o ACM.

O princípio da sua fama deu-se não somente com a invasão de áreas públicas e privadas para abrigar pobres. Na década de 50, houve um episódio que transformou Irmã Dulce em exemplo de heroísmo e destemor.

O episódio deu-se quando um ônibus lotado pegou fogo a poucos metros do Hospital Santo Antônio. Irmã Dulce, absurdamente frágil, com menos de 1,50m de altura, virou manchete ao salvar grande parte dos passageiros, quebrando os vidros do veículo e arrastando para fora pessoas que derretiam sob o fogo. Ela e poucas irmãs companheiras queimaram-se nessa tarefa, mas cumpriram o papel que Deus lhe destinou. Desde então, sua fama multiplicou-se.


JOÃO PAULO E ELA

Em 1980, fui um dos poucos repórteres que acompanharam a visita do Papa João Paulo II em todas as cidades brasileiras por onde passou. Na chegada a Salvador, dez autoridades vestidas de paletó no sol baiano das 10h esperaram longamente o avião descer no Aeroporto Dois de Julho.

A 11ª personalidade a ser cumprimentada pelo Papa foi Irmã Dulce. João Paulo, alto, cobriu com sua batina branca aquele vulto também de branco, minúsculo. E ficaram longo tempo abraçados. Parecia que o Papa falava algo muito emocionante no ouvido da pequena freira.

O amontoado de panos não permitia aos fotógrafos produzir a foto daquele momento histórico. Sairia apenas uma mancha branca na fotografia. O quê fazer?

De repente, o veterano fotógrafo Gervásio Baptista desligou-se do grupo e, dando alguns passos à frente, berrou: "Santidad!"

João Paulo e Irmã Dulce, surpreendidos, olharam para ele e abriram um largo sorriso, produzindo talvez a melhor foto – mais feliz – da primeira visita desse Papa ao Brasil.

Irmã Dulce roubava todas as festas. Era mito. Era a expressão da força de Deus contrariando todas as leis, em benefício da humanidade.

Portanto, não se acanhe em reverenciá-la. E se estiver algum dia em grande dificuldade, diga assim: "Irmã Dulce, me dê uma forcinha aqui, por amor de Deus".

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