Samba sem agrotóxico
"Estamos aí, como vocês estão vendo
estamos velhos mas ainda não morremos"
Hino da Velha Guarda da Portela
Por Luis Turiba
Acontece sempre às segundas-feiras, semana sim, semana não.
Marcado para começar na Hora do Brasil, esquenta mesmo perto do Jornal Nacional. Bom é que não tem hora para terminar. Por volta de meia-noite são servidos caldos para a rapaziada esquentar as vozes, reanimar o gogo e fazer deliciosas saideiras que vão até a madrugada.
Estou falando do Samba da Bebel, uma jovem e charmosa cozinheira paulista que trabalha no restaurante Oui-Oui, no Humaitá, Botafogo.
É ela quem prepara os quitutes do samba que tem base no larguinho da Rua Pedro Américo, em frente à Travessa Petúnia, no Catete. É uma rua muito comunitária e quase toda ainda em paralelepípedo com gigantes pedras de granito nas calçadas. Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, comprou quase um quarteirão de casas antigas por lá para transformá-lo em centro cultural numa parceria com Luciano Huk.
Voltando ao Samba da Bebel: em torno de mesas cedidas pelo Bar do Pezão espalhadas na calçada e debaixo de uma frondosa castanheira, músicos e jovens cantores e cantoras, protegidos por um toldo improvisado contra chuvas de outono, levam sambas históricos, de raiz, o melhor das Velhas Guardas, coisas lá do fundo do baú. Alguns desses músicos são oriundos da Escola Portátil de Música, cujas aulas na UniRio da Urca, sábados pela manhã, são referência na cidade.
Os sambas vão surgindo uns atrás dos outros, entoados com extrema alegria como mantras sagrados. Vem Paulo da Portela, depois Noel, em seguida Cartola, Xangô da Mangueira e de vez em quando até um Paulinho da Viola. Tudo em ritmo zen, pianinho para não sujar com os vizinhos. O ritmo é sustentado por violões, cavaquinhos, pandeiros, tamborins, agogôs e reco-recos – sente-se a falta de uma cuíca chorona lá no fundo. Destaque para aquelas vozes de pastoras que acompanham o cantor solo e dão ao samba carioca uma amálgama de transcendência. Fica parecendo que Tia Ciata baixou no pedaço para abençoar a galera.
Quando eles cantam "Portela, eu às vezes meditando/ acabo até chorando/ pois não posso me lembrar/ Em teu livro tem/tantas páginas belas/ Se eu for falar da Portela/ hoje eu não vou terminar", estão mexendo com coisa série. "Passado de Glória", de Monarco, é um dos hinos mais lindos de toda a história do samba carioca. Eles, porém, nem sabem que isso foi cantado nos porões do Doi-Cod como forma de resistência anti-tortura. Mas o pessoal do Samba da Bebel não está nem aí, vai ligando um no outro e emocionando a quem passa pela roda.
Aliás, a cada dia me convenço que o Rio é uma cidade movida à música. Tem banca de jornal que toca Bethoveen. Já ouvi "Only you" e "Mamas and The Papas". Fora os guitarristas e sopros que tocam nas ruas, no Metrô. Outro dia fui a Academia Brasileira de Letras, casa de Machado de Assis, em pleno meio-dia, saboreaer o mestre Monarco introduzir imortais sambas de Nelson Cavaquinho entre os imortais. Aliás, o compositor da Mangueira sonhou em certa ocasião que a morte iria lhe visitar à meia-noite. Não teve dúvida: atrasou o relógio seis horas. E assim, se tornou também imortal.
Ao deixar a ABL e voltar a pé pela Avenida Rio Branco, topei com um caminhão da galera do Hip-Hop e do funk fazendo uma manifestação contra o Ecad. Uma zoeira só. Um pouco antes, na Cinelândia, em frente ao Amarelinho, foi montado um palco do grupo "Tá Pirando Pirado Pirou" que trabalha por tratamentos mais libertários para loucos e transtornados mentais. O ambiente era felliniano, mas muito alegre. Fantasiados, eles cantavam lindos sambas do "Tá Pirando" e gritavam a plenos pulmões: "Ah, eu tô maluco! Ah, eu tô maluco!"
No início da noite desse dia cariocamente musical, tive oportunidade de assistir no Teatro Rival a um lindo concerto do mesmo Monarco, acompanhado da Velha Guarda da Portela, onde foram relembradas verdadeiras obras-primas dessa frondosa árvore genealógica do samba plantada em Oswaldo Cruz.
Nesse show, o velho mestre chamou essas lindas melodias de "sambas sem agrotóxicos". E porque não estão possuídos pelo veneno da modernidade pagodeira, são eternos. Eternidade essa que se materializa nos meninos e meninas de classe média que tocam e cantam essas coisas antigas com reverência, respeito e emoção na Pedro Américo. É assim: faça chuva ou faça lua, o samba da Bebel dá o maior caldo porque tem raizes.
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