segunda-feira, 30 de maio de 2011

OLHA A FALAR BRASILEIRO AÍ, GENTE

OS XERIFES DA LÍNGUA
José Ribamar Bessa Freire, do blog Taquiprati
22/05/2011 - Diário do Amazonas

 Os toques de clarim e o rufar dos tambores chamaram a Infantaria e a 7ª. Cavalaria. O Exército colocou de prontidão os seus soldados armados até os dentes: a tropa da Academia Brasileira de Letras (ABL), o batalhão dos jornalistas, a brigada ligeira dos escritores, a legião de políticos, o pelotão do Ministério Público e até algumas divisões blindadas da Universidade. Todos eles irmanados na santa cruzada lançaram o grito de guerra que ecoou pelos campos, vilas e cidades do Brasil, ameaçando o inimigo:

- "Oh, vós, que desejais assassinar o idioma. Liquidar-vos-emos. Avante!".
O inimigo é o livro "Por uma vida melhor" da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC, que é apenas a ponta do iceberg. Lá, a autora apresenta a diferença entre falar e escrever e reconhece que na fala existe muito mais variação do que na escrita. O jeito de falar muda bastante, de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. A mesma pessoa fala diferente se está em casa, na feira, no bar, no tribunal ou na igreja.
- "Existem várias línguas faladas em português" – já disse o escritor José Saramago, prêmio Nobel da literatura. Nesse sentido, cada um de nós é "bilíngue" na própria língua. Uma dessas línguas é a chamada 'norma culta', a de maior prestígio em nossa sociedade, que é usada na sala de aula e está mais próxima da escrita formal. Outras são as variedades populares, regidas por uma diversidade de regras, mas que não chegam a prejudicar a intercompreensão.  
Acontece que milhões de brasileirinhos chegam à escola, falando segundo as regras da variedade popular. Por isso, são ridicularizados e humilhados. Dessa forma, são levados a se envergonharem das variedades que a norma culta considera "erradas", e não se apropriam, nessas condições adversas, da outra variedade considerada "certa". São reprimidos. Sua fala fica excluída dos espaços públicos, comprometendo o exercício da cidadania.
Esse fato demonstra a incapacidade do Estado, que não encontrou ainda o caminho para permitir que todos os alunos transitem pela norma culta. A autora defende, então, que a alternativa é admitir que a variedade popular EXISTE, tem suas regras e é legítima. As duas normas não se excluem, mas se complementam. O respeito ao jeito de falar do aluno cria um ambiente acolhedor e propício à aprendizagem da norma culta. Só isso.
Mas tal proposta foi suficiente para que os xerifes da língua, que combatem a diversidade, disparassem suas armas alegando, alguns deles, que o MEC quer instituir o "lulês" como idioma oficial. Distorceram – ou no mínimo não compreenderam (será que leram?) - o que está escrito no livro. Eles acham que quem defende o respeito à norma popular quer impô-la ao conjunto da sociedade, como eles o fazem com a norma culta. Por isso, chamam a 7ª. Cavalaria!!!
As cavalgaduras
A cavalaria veio. Na linha de frente, cavalgando um pangaré manco – tololoc, tololoc - o centurião José Sarney (PMDB, vixe-vixe!), membro da ABL, ex-presidente da República e presidente do Senado. No artigo 'Fale errado, está certo' na Folha de SP – com a espada em riste, ele faz aquilo que fez ao longo de sua vida: atribui aos outros seus próprios defeitos. Escreve que o livro em questão pretende "oficializar a burrice", que "o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente", quando é justamente o contrário, e que "defender a língua é defender a pátria".
Sarney, defensor da pátria? Quaquaraquaquá! O que é 'a língua' e o que é 'a pátria' para ele? Em sua 'pátria' não cabem os deserdados, apenas os beneficiados pelo nepotismo. Já a 'língua' que defende não é um sistema variado, dinâmico e rico, mas se reduz à norma culta, que ele congela. Elimina as demais variedades, proclamando que apenas uma variedade é o português, embora nas conversas telefônicas com sua neta, que ouvimos gravadas e reproduzidas pelos telejornais, a norma usada para contratar o namorado dela, mais coloquial, não foi bem a que ele defende.
Da mesma forma, Sarney, o vixe-vixe, protesta com indignação contra a anarquia:
- "Voltemos ao sistema tribal: cada um fala como quer".
Imagina! Que país é esse onde cada um fala como quer e não como os sarneys da vida pretendem impor! Sarney, que passou a vida confundindo a coisa pública com a privada, sobretudo no que se refere à grana, quer privatizar também a língua. Acha que ela é sua e dos seus. Não reconhece que se trata de produção coletiva. Nem sequer suspeita que existam regras no falar popular. Exige que a norma culta seja o padrão de correção de todas as demais variedades, confirmando o que escreveu Roland Barthes:
- "A língua não é fascista quando impede de dizer, mas quando obriga a dizer de uma determinada forma".
Cavalgando um burro alazão – tololoc, tololoc – o presidente da ABL Marcos Villaça também atacou o livro. Reduziu a riqueza do idioma a uma reles operação aritmética, com uma visão primária da matemática, dizendo que admitir outras formas de falar "é como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia ou no palácio".
A mesma imagem foi usada por sua colega, a escritora Ana Maria Machado, que esqueceu o que ensinou quando foi minha professora de Comunicação Fabular e Icônica na UFRJ. Ela reforça essa comparação infeliz: "Equivale a aceitar que dois mais dois possam ser cinco, com a boa intenção de derrubar preconceitos aritméticos". Trata-se de uma falácia, porque ninguém está reivindicando que 2+2=5, mas a possibilidade de ser 1+1+1+1 ou 3+1 e até 2+2=5-1 e assim por diante, já que o quatro contém o infinito.
Mas quem se superou mesmo em bobagens foi o jornalista Merval Pereira - um projetinho de Sarney - que veio cavalgando uma besta de sela desembestada: tololoc, tololoc. Em sua coluna no Globo concluiu que se o português popular é legitimo, então ele deveria "ser ensinado nas escolas e faculdades", como se fosse preciso ensinar o que já se sabe.
Merval condenou ainda o que chamou de "pedagogia da ignorância" e criminalizou o livro adotado pelo MEC: "Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância".
Os criminosos
Ops! Vocês ouviram o que eu ouvi? Ato criminoso? Pois é. Parece que os xerifes do idioma querem criminalizar a desobediência às regras da norma culta, reproduzindo o que aconteceu na Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia (1832-1840). Bilhetes escritos pelos cabanos, anexados aos processos criminais, foram exibidos nos tribunais durante o julgamento como "prova de seus instintos criminosos". Um deles assinado por Antônio Faustino, um cabano com a patente de major, diz:
"Axome çem monisão que muntas vezis teno pidido. Çe uver cunfelito aqi não çei o qe soçederá. Estarei em pouçilitado de zequtar qalqer prugetu. Halguns camaradas já çairão daqi pur farta de cumer". Pontu da Barra, 3 de otobro de 1835. Antonho Fostino, manjor de artilharia.  
O outro, que também se encontra no Arquivo Público do Pará, "com uma caligrafia feita de garranchos", é de um chefe cabano que adverte o presidente da Província:
"...E se V. Exa. Responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e outros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra".
Um terceiro documento, escrito pelo tenente-comandante de Soure, é um ofício dirigido ao cabano Eduardo Angelim, que ocupou o cargo de presidente da Província:
"Rogo a V. Exa. Nois quera há-remidiar com algun çal e mesmo harmamentu que estamos mointos faltos deles. O mais V. Exa. verá no Pidido jontu q. faz obegeto tãoben desti ufisio. Deos guarde V. Exa. pur moitos anus. Soure, 13 de Dezembru de 1835".
Que Deus guarde a ABL, Sarney e Merval pelo período de tempo acima indicado, bem como proteja políticos como o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), para quem o livro adotado pelo MEC "está transformando a ortografia em pornografia gramatical" e até o senador Cristovão Buarque (PDT), ex-reitor da UnB e ex-ministro da Educação, que declarou sobre o livro em questão:
- "Claro que o livro deseduca e, pior, mantém o apartheid linguístico. Manter o português errado é um crime, é manter a desigualdade".
Crime? Desigualdade? Segundo Boaventura de Souza Santos, devemos "lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize". Não se trata, evidentemente, de adotar as normas dos cabanos, mas de recusar sua criminalização.
A professora Heloisa, que fez um trabalho cuidadoso, está sendo tratada como "criminosa" segundo algumas divisões blindadas da própria Universidade que também entraram em ação. Cláudio Moreno, doutor em Letras, ameaçou no jornal Zero Hora de Porto Alegre:
- "O livro tem que ser proibido e as pessoas devem ser punidas".
Não disse que tipo de punição considera mais adequada. Acionado, o pelotão do Ministério Público partiu para o ataque. A procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, cavalgando um jegue – tololoc, tololoc - considerou o livro citado como "um crime contra nossos jovens", ganhando manchete de página no Globo. "Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público", avisou a procuradora.
O historiador peruano Pablo Macera comenta que se o Império Romano conseguisse proibir o latim vulgar, como querem agora os xerifes da língua, nós não estaríamos hoje falando espanhol, português, francês, italiano, romeno, catalão – todas elas variantes "erradas" do latim clássico, conhecidas como línguas vulgares na Idade Média.
A troca de 'l' em 'r', que costuma ser considerada como "atraso mental", quando alguém fala "pobrema", "craro" ou "pranta" é um fenômeno fonético presente na formação da língua portuguesa, como esclarece Marcos Bagno. Palavras latinas como "blandu, clavu, flacu, sclavu, obligare" mantiveram o "l" no espanhol, no francês e no italiano, mas ficaram consagrados na norma culta da língua portuguesa com o "r": "brando, cravo, fraco, escravo, obrigar", etc.
Os xerifes querem continuar hegemônicos na formulação da política de línguas, autoritária e intolerante. Para isso, manipulam a opinião pública, ignorando a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, aprovada em 1996 em Barcelona, num evento realizado com o apoio da Unesco, recomendando que "os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem" e que as diferenças linguísticas sejam respeitadas. 
P.S. – Agradeço os colegas do COMIN e da EST, de São Leopoldo (RS), e os colegas da lista Uerj XXI, com quem pude trocar ideias sobre essa questão. Eles não têm, no entanto, qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pela forma desse texto.
 
DOIS COMENTÁRIOS; CÉLIA COLLET E THIAGO DE MELLO
Foram incorporados ao texto por excederem o espaço dos comentários. Célia Collet, doutora em Antropologia Social, autora da tese "Rituais da Civilização, rituais da cultura: a escola entre os Bakairi" orientada por Bruna Franchetto. Thiago de Mello, poeta de Barreirinha (AM) e do mundo, autor entre outros de "Faz Escuro mas eu Canto", "Canção do Amor Armado" e "Estatutos do Homem".   
 
COMENTÁRIOS DE CÉLIA COLLET
Parabéns pelo seu artigo "os xerifes da lingua" . Estou impressionada com os comentários gerais sobre o livro "Por uma vida melhor". Não lí o livro, e portanto, não falarei sobre ele. Meu interesse recai sobre a reação da elite culta à lingua portuguesa (brasileira) oral. Sabia - pois me interesso bastante pelo assunto – que o poder da cultura oral é extremamente temido pela elite letrada. Mas não imaginava tamanho medo.
Estamos diante de um quadro político que coloca frente-a-frente a língua portuguesa formal-escrita e as línguas portuguesas informais-orais. A língua colonizadora ainda hoje pretende submeter as "línguas" colonizadas.
Argumentos sobre a "pobreza" da língua portuguesa oral em detrimento de uma língua escrita "rica" mostram o quanto ainda os brasileiros desconhecem a riqueza de culturas deste país. Um vasto vocaburário, estilos diversos, formas poéticas variadas são encontradas em cada cantinho do Brasil. Para perceber basta apenas se livrar do preconceito de querer sempre "corrigir" o "errado", e ouvir...
Em países europeus, como a Inglaterra, ocorreu que a escrita da língua surgiu da fala. Por isso se diz que um inglês não fala tão "errado" como um brasileiro. A não ser meus colegas de trabalho no Mc Donalds, negros, que sendo filhos de migrantes africanos falavam um ingles próprio, também considerado "menor" pelos outros ingleses.
No Brasil, a língua falada se desenvolveu maravilhosamente adequada ao tipo de vida que se tinha (e tem), mas já havia a língua portuguesa escrita, formada fora do nosso contexto, e que ainda hoje serve de parâmetro único para medir o que é errado e o que é certo.
Vejam: é sempre a lingua como emblema de pertencimento a uma classe, a um grupo. Da mesma forma que Norbert Elias nos fala que a introdução dos talheres à mesa surgiu como mais uma forma de separar simbolicamente a elite dos "outros", a língua é outro importante emblema da discriminação social. Saussure já dizia que toda língua é arbitrária, ou seja, não há uma forma melhor ou pior de expressar um conceito. Portanto, se adimitirmos que o português oral brasileiro é tão rico como o português escrito não há como dizermos que o segundo é melhor que o primeiro. É apenas diferente.
E aí chego em um ponto importante de tocar: a preocupação com o valor da língua oral coloquial não significa tirar a importância da língua escrita. Podemos usar cada uma em seu contexto, e ficarmos assim mais enriquecidos culturalmente. Mas aqueles que pregam a superioridade da língua culta contribuem para o empobrecimento das formas de expressão ao deixar de lado os diversos modos de se falar o português.
Como dizem os Guaraní: "o um é o mal"
Celia Collet
 
COMENTÁRIO DO POETA THIAGO DE MELLO
 
A tua crônica sobre os Xerifes da Língua é um primor. Clara como água potável, pode-se até beber. Só faltou dizer porque tu não falas nem escreves do jeito que fala quem não teve a sorte de estudar.
Lembro os versos do Manuel Bandeira sobre a infância dele:
 - A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
é macaquear
a sintaxe lusíada.
 
Depois  ele cresceu,  estudou (era um dos melhores conhecedores do idioma - me disse um dia o Aurélio Buarque ) e escrevia como tu e eu, uns príncipes.
 
Mas vou te contar: me lembro feliz da frase da Dorsemira, cabocla de Urucará, depois de uns abraços intermináveis  num desvão da rua Japurá, quando eu voltava da aula noturna do Ginásio:
 - Eu acho que nós gosta é já demais.
Importante:
As professoras de Barreirinha ensinam e exigem dos alunos o português da gramática. Rebaixam a nota de erro gramatical na prova escrita. Mas quando chegam na rua, no barco, no mercado, na festa da padroeira, vão com o pessoal que foram, tomam o munguzá que nós gosta e contam que é uma questão cultural, elas também cagam na fossa.
 
Te abraço saudoso. Vou ler o artigo de hoje sobre os Tarumã.
 
Thiago de Mello

 

Nenhum comentário: